A estratificação do voto nas eleições de Agosto de 2022 em Angola


Democracias baseadas em sufrágio universal são maiores ou menores em proporção ao número de cidadãos com a capacidade eleitoral activa, que por sua vez deriva da densidade populacional. Maior é a densidade populacional, maior é a capacidade eleitoral activa e o sufrágio universal, maior é a base de legitimação do regime democrático. Que incidências terá a demografia nas eleições  de 24 de Agosto de 2022 em Angola?


Premissa geral sobre a população africana

O aumento da população africana provoca interpretações díspares ligadas à presumível ineficácia das políticas públicas de controlo da natalidade vis-à-vis taxas de crescimento económico e da justa distribuição da riqueza em países em vias de desenvolvimento. Aliás, inserem-se aqui pronunciamentos recorrentes de determinadas personalidades políticas internacionais que criticam o que elas julgam ser natalidade descontrolada!

Na verdade, a preocupação em relação ao ajustamento das taxas de natalidade às taxas de crescimento económico é genuinamente africana antes de ser de qualquer outro país, pois, lembre-se que Declaração de Harare sobre Prevenção e Controlo do Paludismo no Contexto da Recuperação Económica e do Desenvolvimento da África, adoptada na 33ª Sessão Ordinária da Assembleia de Chefes de Estado e de Governo da Organização da Unidade Africana, reunida no Zimbabwe de 2 a 4 de Junho de 1997, trouxe no seu texto duas decisões anteriores: a decisão AHG/Decl.5 (XXX) sobre o Desenvolvimento Social; e a AHG/Decl.4 (XXX) sobre a População e Desenvolvimento em África.

Essa última decisão, adoptada num contexto de redefinição das políticas de desenvolvimento, da aplicação das aberturas às economias de mercado e da crítica às ajudas ao desenvolvimento, foi indicativa da necessidade de melhorar e acautelar a política reprodutiva com o alcance e consolidamento da dignidade do Homem Africano.

Não obstante, essas taxas de crescimnto eram inevitáveis e naturais, reconhecendo que a África possuía uma população bastante inferior àquela europeia ou asiática, em parte, como consequência do tráfico de escravos, que privilegiou a população em idade activa e reprodutiva do continente. Os efeitos do despovoamento africano mantiveram-se ao longo de décadas, basta ver que na década de 1960 a população europeia era estimada em 605 milhões de habitantes; a asiática em 1,7 mil milhões, ao passo que a africana em apenas 283 milhões de habitantes  (Fonte : Population Pyramid).

Aumenta a população eleitoral activa

Angola, como a maioria das sociedades africanas, regista uma significativa taxa de natalidade bem como a relativa proporção entre filho/mulher, situada entre 6 e 7 filhos por mulher residente em zona urbana ou rural, respectivamente, e daqui o aumento da sua população eleitoral: em 1992, dos cerca de 12 milhões de angolanos, 4,828,626 tinham a capacidade eleitoral activa; em 2008, dos cerca de 21 milhões, 8,256,584 foram os eleitores registados; em 2012, cerca de 26 milhões de angolanos e 9,757,671 de eleitores activos (Fonte: Electoral Institute for Sustainable Democracy in Africa). Já em 2017, dos cerca de 29 milhões, apenas 7,093,002 participaram na votação (Fonte: CNE).

Para as eleições de 24 de Agosto de 2022, o país registou 14,399,391 eleitores (Fonte: Jornal de Angola), que é o dobro de eleitores do ciclo eleitoral anterior, sendo a segunda vez que vê duplicado o universo de eleitores registados e habilitados ao voto depois do que se verificou entre 1992 e 2008.

Distribuição demográfica desigual

Como se depreende acima, o universo de eleitores angolanos varia entre ½ e ⅓ da sua densidade demográfica. Para a eleição do corrente ano, o universo de eleitores representa um pouco menos de ½ dos mais de 33 milhões de angolanos.

Considerando a persistente desigualdade na distribuição da população angolana, motivada pelas assimetrias na alocação de recursos destinados ao desenvolvimento, na urbanização ou no êxodo rural e/ou do interior para a costa, Angola vê concentrada quase ⅔ da sua população (20,030,371) em 5 das 18 províncias, nomeadamente, em Luanda (9,079,811 habitantes), Huíla (3,185,244); Benguela (2,749,300), Huambo (2,645,080) e Kwanza Sul (2,370,936). Excluindo Huambo e Huíla deste elenco e adicionando-lhe Cabinda (894,276), Namibe (650,500), Zaire (766,430) e Bengo (497,721) obtém-se que mais da metade da população angolana, isto é, 17,089,974, vive em 7 províncias costeiras (Fonte: a partir do INE),  e o resto nas demais 13 do Heartland angolano.

Daqui, em termos da distribuição demográfica, pode-se aferir, com mais ou meno precisão, que a maior proporção dos mais de 14 milhões de eleitores situa-se na zona costeira. Porém, visto que a Huíla e o Huambo são a segunda e terceira províncias mais populosas de Angola, então, passa-se de 7 a 9 províncias com maior representatividade no universo de eleitores, isto é, 7 da zona costeira e 2 do Heartland, às quais se podem adicionar àquelas detentoras de uma população superior a 1 milhão de habitantes, nomeadamente, o Bié (1,883,101), Uíge (1,867,157 ), Cunene (1.271.638), Malange (1,247,509) e a Lunda Norte (1,090,897 habitantes), para um total de 14 províncias, isto é, 7 costeiras e 7 do Heartland.

Já em termos de distribuição etária e da incidência e/ou inclinação do voto para a manutenção do status quo (que é favorável ao partido MPLA) ou da sua alteração (favorável à UNITA e a todos os outros oponentes daquele primeiro), se validarmos a hipótese geral que vê a juventude do pós-independência ou pós-Memorando do Luena mais propensa ao voto de protesto do que a geração anterior, então, pode-se aferir, com menos precisão, que os eleitores com idades que variam entre os 40-20 anos tenderão a votar para a alteração do status quo, ao passo que os com a idade superior aos 40 anos para a manutenção do status quo ante.  Todavia, sendo o campo dos partidos políticos oponentes, que poderiam maximizar o voto de protesto, bastante numeroso e heterogéneo (UNITA, PRS, FNLA, CASA-CE, BD, PHA, Partido-Ndjango, APN), o voto de protesto poderá redundar em dispersão de voto, que não garantiria a maioria qualificada a nenhum deles,  e isto penderá em benifício do partido do MPLA, destinatário de voto tradicional e homogéneo, pelo menos no seio dos que possuem uma idade igual ou superior aos 40 anos.

Além disto, há igualmente a estratificação do voto em termos de classe social (excluindo o género e raça). Os cidadãos da classe média, detentores de uma estabilidade social e económica, não havendo nada a protestar, o seu voto será, com mais ou menos precisão, um voto pela continuidade do status quo em favor do MPLA. Essa classe, regra geral, vive no casco urbano, com acesso a serviços sociais (saúde, educação, segurança pública, electricidade, água, lazer, financiamentos e outros recursos). Fazem parte desta classe social, grosso modo, os funcionários públicos, os das empresas público-privadas, das missões diplomáticas, os da magistratura, os dos sectores da ordem, defesa e segurança, incluindo seus familiares e colaboradores, além da elite intelectual conservadora.

Há também a estratificação do voto derivado do constraste entre o centro e a periferia, entre a cidade e o campo. Enquanto a classe média, residente no centro ou na periferia, vota motivado pela salvaguarda dos seus privilégios adquiridos, existe um voto tradicional quer no MPLA, quer na UNITA, PRS ou FNLA que não é clientelar. Trata-se do voto ideológico. Um voto fundado na crença nos ideias e princípios daqueles partidos políticos, bem como na militância histórica dos seus membros. Esses eleitores, regra geral, vivem no Heartland, em zonas tradicionais ou não de cada um desses partidos, ou mesmo até, com os êxodos do passado, hoje, podem ser encontrados nas cidades costeiras, no centro ou periferia de outras cidades do Heartland.

Contudo, à diferença dos partidos políticos oponentes, que podem deter uma vantagem do voto de protesto nas sedes capitais das províncias, com realce para Luanda, no Heartland o MPLA detém uma vantagem competitiva, graças à sua implatanção através dos órgãos da administração local do Estado, da reorganização das autoridades do poder local a quem oferece uma coabitação simbólica do poder a nível comunitário e ao facto que nessas zonas a maioria da população tem uma faixa etária que privilegia o status quo mais do que alterações substanciais do seu modus vivendi.

Sistema eleitoral proporcional não baseado na demografia, mas no voto

O sistema eleitoral subjacente ao artigo 109 da Constitição da República de Angola, pois actuado pela lei eleitoral em vigor, além de imprecisões e incompatibilidades que lhe caracterizam (ver aqui), pode ser tido como sistema proporcional, com mais ou menos argumentações. Contudo, não se trata de uma proporção baseada na densidade demográfica de cada província do país, que continua a eleger 5 deputados cada ao parlamento, seja ela menos populosa (como Bengo) ou mais populosa (como Luanda). Trata-se, sim, de uma proporção ligada ao universo de votos validamente expressos e obtidos por cada partido político a nível de cada círculo eleitoral (provincial ou nacional). Assim, com esse sistema proporcional o partido político que retira maior benefício não é aquele que obtém mais votos num ciclo eleitoral ou noutro, bem sim aquele que, no universo dos votos validamente expressos, obtém cumulativamente mais votos, sobretudo, considerando que o Presidente da República é eleito no círculo nacional, que compreende 130 deputados, aos quais se somam os 90 das 18 províncias do país.

Em suma, o partido político que tiver mais votos quer nas 7 províncias costeiras, quer nas 14, incluindo as 7 do Heartland, terá, quase seguramente (isto se a desigualdade na distribuição demográfica continuar assim) maior probabilidade de vencer as eleições em Angola.

Vista a estratificação do voto em termos demográficos, etários, de classe social e de valores e princípios ideológicos, não há, no contexto actual, nenhum dos 9 (MPLA, UNITA, PRS, FNLA, CASA-CE, BD, PHA, Partido-Ndjango, APN) que tenha uma vantagem competitiva absoluta. Contudo, há os que partem de uma posição privilegiada do que outros, através do emprego singular ou colectivo dessa estratificação. Ou seja, em termos da dispersão de voto, a vangagem recai sobre o MPLA; em termos de voto ideológico sobre o MPLA, a UNITA, o PRS e a FNLA; em termos de voto de pretesto a vantagem recai sobre a UNITA e outros da oposicão (daí a dispersão do voto); em termos etários a vantagem recairia sobre a UNITA, sobretudo, nas grandes cidades como Luanda; em termos de classe social a vantagem recairia sobre o MPLA.

Em última análise, dada a inexistência do princípio de proporção demográfica no sistema eleitoral angolano, a posição privilegiada de partida produzirá efeitos determinantes no partido político que acumular mais votos em ambos os círculos eleitorais, graças ao peso da proporção do voto na conversão em mandato parlamentar e presidencial.

Issau Agostinho

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