Um dos elementos de fundo que caracterizam as lideranças é a continuidade ou descontinuidade da forma e/ou substância entre duas direcções que se alternam na condução dos respectivos partidos ou coligação de partidos políticos. A não distinção deste traço caracterizador resulta em erros de análise e compreensão. Vejamos alguns desses traços entre o MPLA da precedente e da sucessiva liderança entre 2017 e 2022.
Candidato conforma-se ao partido; os membros à sua liderança
Os partidos políticos ou suas coligações, enquanto associações de vontades político-cívicas dos seus membros em torno de um projecto de sociedade, erguem suas lideranças (que agem em nome dos membros) com base em mecanismos de legitimação previstos estatutariamente (eleição directa, eleição indirecta, nomeação, proclamação ou conclamação, esta última comum durante actos de legitimação contestatários).
Durante a assembleia ou qualquer outra modalidade de reunião destinada à legitimação da nova liderança pelos seus afiliados (congresso, conferência, encontro), geralmente, os candidatos conformam-se aos princípios, valores, ideologia e programa de sociedade, assim como à uma antiga tradição do estilo, sentimendos de massa, pscicologia e expectativas consolidados no tempo no seio dos associados ou ainda (no caso de partido ou coligação de partidos políticos governante) da sociedade. Aos primeiros (princípios, valores…) e aos segundos (tradição do estilo…) podem corresponder a continuidade ou descontinuidade entre duas lideranças sucessivas, respectivamente.
Assim, se antes da legitimação o candidato conforma-se ao partido ou coligação de partidos políticos (conformidade formal), após a sua legitimação na liderança é o partido ou coligação de partido político, pelo menos a nível de cúpula, que se conforma ao novo líder, sua visão, seu estilo, psicologia e suas expectativas para com os associados e a sociedade (conformidade substancial), já que não é a conformidade ou não aos princípios, valores e ideologia (que são permanentes e comuns) que determinam a continuidade ou descontinuidade com a liderança precedente, mas sim a conformidade ou não ao estilo, personalidade, psicologia e expectativas ou anti-expectativas com o líder antecessor.
Casos exempleficativos consumados
Em primeiro lugar, o MPLA guiado pelo Presidente Neto de 1962 até 1979 não é o MPLA guiado pelo Presidente dos Santos de 1980 até 2018.
Em termos de conformidade substancial, o MPLA de Neto é assente no centralismo democrático, próprio de movimentos marxistas da época, em que as deliberações vinham tomadas pela assembleia colegial, num contexto em que o «presidencialismo puro» de Neto era percebido como intolerante até pelos seus próprios membros. A nível da sociedade, a persistência de traços da Constituição da Independência (CI) de 1975 continuava a garantir ao Conselho de Revolução o mandato e o poder legislativos.
Por sua lado, se em termos de conformidade formal o MPLA de dos Santos manteve a mesma vocação ao poder, os mesmos traços socialistas, e de partido de Estado, em termos de conformidade substancial o I Congresso Extraordinário do MPLA de Dezembro de 1980, que legitimou a transição entre Neto (perecido um ano antes) e dos Santos, marcou uma clara descontinuidade substancial com o MPLA de Neto. Basta ver que fruto desse congresso e da revisão da CI foi abolido o Conselho da Revolução e substituído pela primeira Assembleia Nacional Popular na história de Angola Independente.
Em segundo lugar, nem a UNITA liderada por Jonas Savimbi entre 1966 e 2002 é a UNITA liderada por Isaías Samakuva entre 2003 e 2019, e qualquer mês mais depois da anulação pelo Tribunal Constitucional em Outubro de 2021 do Congresso que elegera Adalberto da Costa Júnior em Novembro de 2019, sucessivamente reeleito em Dezembro de 2021.
Após a proclamação da independência, a UNITA do primeiro passou a ser essencialmente um movimento de guerrilha contra o MPLA de Neto e o seu poder de Estado monolítico. Salvo excepção, Savimbi era a UNITA e a UNITA era Savimbi, considerando que nos seus múltiplos congressos de legimitação era o canditado único, como aliás, o era para o MPLA de Neto ou de dos Santos. Já a UNITA de Samakuva é uma formação político-partidária com vocação ao poder por via do sufrágio geral nas eleições legislativas e presidenciais às quais concorreu (2008, 2012 e 2017). Quer a luta pela conquista do poder em Angola por via das eleições, quer os múltiplos congressos realizados desde 2003, que contaram com mais de um candidato, representam um forte sinal de descontinuidade entre a UNITA de um e de outro.
Descontinuidade material no seio do MPLA
No plano material e consequente, assim como o MPLA de Neto não é o MPLA de dos Santos, ou a UNITA de Savimbi não é a UNITA de Samakuva, também o MPLA de João Lourenço não é o MPLA de dos Santos, e a UNITA de Adalberto da Costa Júnior não é a UNITA de Samakuva.
Embora exista uma linearidade em termos formais no seio de cada partido ou coligação de partidos políticos, ligada aos factores acima enunciados, e que iludem a sua continuidade, como vimos, a linearidade não equivale necessariamente a continuidade, pelo menos não a continuidade substancial, na medida em que, como no passado entre Neto e dos Santos ou entre Savimbi e Samakuva, a ascensão à liderança do MPLA pelo João Lourenço em Setembro de 2018 é caracterizada, por um lado, pela linearidade nos programas e princípios do partido e da acumualação do cargo de presidente do MPLA com o da república (que pós fim às especulações de bicefalia durante o ano em que dos Santos esteve a guiar o partido após a sua saída da Cidade Alta), mas por outro lado, pela descontinuidade substancial com o seu antecessor, quer em relação à agenda de governo (pensemos em combate à corrupção que vê implicados inclusive os filhos do seu anterior), quer em relação ao seu estilo reconciliador com a história do próprio partido [o reconhecimento de Ilídio Machado (1956-1959) e Mário Pinto de Andrade (1959-1962) como primeiro e segundo presidentes do MPLA)] e até das expectativas geradas no seio dos associados e da sociedade angolana (relativos à maior abertura, democraticidade e pluralismo político e melhoria social).
Por conseguinte, tendo em conta apenas esses três elementos (combate à corrupção, estilo reconciliador e expectavivas sócio-políticas), o MPLA do passado não pode ser o mesmo hodierno. Isto é, os slogas das manifestações de 2013, quais “32 é muito” ou “32 + 2 mandatos é muito”, embora possam ser somados ao MPLA enquanto linearidade formal e histórica, não são, porém, aplicáveis ao MPLA enquanto descontinuidade substancial, na medida em que a historiografia política angolana observa não só contínuas alternâncias nas lideranças políticas das suas formações mais significativas desde o advento do multipartidarismo [Entre Eduardo Kuangana e Benedito Daniel (PRS); Holden Roberto, Ngola Kabangu e Lucas Ndonga (FNLA); José Eduardo do Santos e João Lourenço (MPLA); Isaías Samakuva e Adalberto da Costa Júnior (UNITA)], como também rupturas em termos de estilos com as lideranças anteriores.
Todavia, a não distinção geral no seio das populações entre a continuidade (conformidade formal) e descontinuidade (conformidade substancial) entre o MPLA de dos Santos e o de Lourenço reside no facto de se tratar de um partido governante, reforçada pela permanência no poder desde que o país chegou à independência, cuja precariedade social sentida ou real acumulada durante décadas não regista descontinuidade, mas também, diga-se que não registaria descontinuidade mesmo se em 2017 tivesse sido eleito um outro partido ou coligação de partidos políticos, pois o tão esperado desenvolvimento económico e a melhoria social não se consumariam em cinco anos.
A relativa não distinção entre as duas lideranças do MPLA (que é mero acto de generalização de análise de quem assim o faz) pode igualmente encontrar a sua justificação na linearidade institucional e burocrática, na medida em que se trata, de facto, de uma descontinuidade no poder, e não descontinuidade do poder (governa ainda a classe política com a mesma afinidade ideológica, as regras de jogo são as mesmas, salvo alterações pontuais que não minam a manutenção do poder, e o partido de governo continua a ser dominante).
Em síntese, enquanto existe uma descontinuidade substancial entre o MPLA de dos Santos e de Lourenço a nível do estilo, da personalidade, da psicologia, das expectativas gerais e até da agenda, a linearidade institucional do MPLA e a sua permanência no poder conduzem a interpretação geral no sentido da continuidade quer formal, quer material do MPLA, ignorando a referida descontinuidade havida e factual a nível das duas lideranças.
Essa interpretação é assente na prevalência de precariedade social sentida ou real pela população. Porém, mesmo se tivesse havido um outro partido ou coligação de partidos políticos no governo entre 2017 e 2022, salvo melhores dados, o status quo sócio-económico não teria registado melhorias significativas neste hiato de cinco anos, tendo em conta as desafiadoras insuficiências produtivas, inovativas, o déficit da balança comercial, a escassez de recursos financeiros e as baixas taxas de crescimento económico e de criação de emprego bem remunerado que ainda enfermam a economia angolana.
Issau Agostinho
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