O passamento físico prematuro da cantora Sandra Fulikeno, vencedora da Variante 2013, lembra-nos, mais uma vez, de que os esforços para a promoção da cultura e da salvaguarda dos interesses e bem-estar dos seus fazedores ainda são ineficazes e exíguos. Quando uma fazedora de cultura desaparece, seus feitos permanecem, mas se não forem tutelados, desaparecerão também, tarde ou cedo. Em meu ver, quando um povo promove a arte, a arte promove o povo, e nós continuamos a faz uma e outra de forma titubiante, desestruturada e inconsistente. Com o presente, proponho às autoridades locais da Província da Lunda Sul alguns contributos para a promoção da cultura e salvaguarda dos artistas.
Embora este contributo seja dirigido às entidades governativas da Lunda Sul, estende-se igualmente às das regiões vizinhas, com que àquela partilha laços consanguíneos, culturais, identitários e sociais comuns. Até 1978 existia apenas Lunda, cuja divisão administrativa em Lunda Sul e Lunda Norte ocorre em naquele por força do Decreto nº84/78, de 4 de Julho de 1978, publicado no Diário da Républica, I Série Nº 156.
É consabido que o génio criador do Povo Cokwe – dos seus escultores, artesãos, músicos e cantores, bailarinos, arquitectos, pintores, escritores e de outras formas de arte – contribui enormente não só na sua identificação, mas também na formação da Nação Angolana. A exposição das peças de Arte Cokwe no Museu Nacional de Antropologia, em Luanda, no Museu do Dundo, e nas exposições em Saurimo ou Luena, é prova bastante de quão é enraízada e difusa este génio criador do nosso povo.
Todavia, o reconhecimento do valor artístico do génio criador Cokwe é transnacional, não se limitando apenas ao território nacional. Existe, de facto, uma bibliografia internacional robusta que o demonstra, colocando a Arte Cokwe dentre mais expressivas e consagradas as artes do continente africano e do mundo inteiro. Pensemos em Atlas Ilustrado, intitulado Arte Africano, uma recolha antropológica e etnográfica da arte africana. Nesse Atlas estão ilustradas as artes dos povos de todo o continente, desde o Mali à Nigéria, dos Camarões ao Congo, da Etiópia à Angola, expondo máscaras cokwe da mwana pwo ou tshibongo (Cfr.José Luis Cortés López, Arte Africano:223).
Pessoalmente, durante a minha viagem de estudos a Bruxelas em 2015, pude visitar uma exposição de arte no palácio real belga, onde estavam presentes, entre outras, a mascara de Cikunza, símbolo da fertilidade cokwe. A presença dessa máscara naquela exposição revela não só os laços culturais comuns entre os cokwes de Angola e da RDC, como também das impressões digitais dos interesses belgas na região Lunda nas primeiras décadas do século XX. Ana Paula Ribeiro Tavares, na sua dissertação de doutoramento com título História e Memória. Estudo sobre as sociedades Lunda e Cokwe de Angola, revela um conflito de interesses entre Portugal e Bélgica, sobretudo depois da descoberta de diamantes em 1906 na fronteira entre as duas possessões coloniais, que iam desde a Lunda (hoje Angola) até a Catanga (hoje RDC), que eram partes do mesmo Império Lunda até antes da divisão ocorrida na conferência de Berlim de 1885.
Esse conflito de interesses entre a Bélgica e Portugal foi ainda detalhadamente retratado pelo Herinque de Carvalho, na sua obra A Lunda: ou os Estados do Muatianvua, domínios da Soberania de Portugal…. Reagindo a publicação de Le Siécle, segundo a qual toda a região de alto Kassai, pertença de Lunda, deveria ser atribuída ao Estado Livre do Congo – que nessa altura era propriedade privada do rei Leopoldo II –, o autor recordou a convenção entre Portugal e a Associação Internacional do Congo de 14 de Fevereiro de 1885, que difiniu as fronteiras desde “O paralelo do Noqui até a intersecção com rio Cuango, a partir deste ponto,na direcção do sul, o curso do Cuango” (Cfr. Carvalho, 1890:5).
A criação do Museu do Dundo em 1936, sob a coordenação de José Redinha – por iniciativa da Diamang, empresa diamantífera criada em 1914 com capitais de Portugal, Bélgica, Reino Unido, EUA, África do Sul, entre outros – pode, por vezes, alimentar heresias de que a arte criada nessa altura seja arte colonial, mas a verdade é que o Povo Cokwe vem fazendo arte desde muito antes de ter mantido contactos consistentes com os europeus ocorrido apenas nas últimas décadas do séc. XIX. A Arte Cokwe confunde-se, por isso, com a sua história! Todavia, o mérito do museu está na recolha e conservação da criação artística cokwe, e algumas peças terão sido desviadas durante o período de transição entre a administração colonial e a da Angola independente.
No entanto, embora por vezes nem damos por isso, é a arte a verdadeira expressão da alma histórica de um povo. É a arte que dá o substracto material à identidade de um povo. É a arte que assegura a existência histórica e perpétua de um povo. Mas, a arte não se faz sem artistas, sem a componente humana criadora.
Segundo dados do Jornal de Angola, a província da Lunda Sul contava, em 2013, com 113 artistas registados, entre músicos, artesãos, escritores, promotores de eventos, bailarinos e actores, um número bastante ínfimo pela densidade demográfica e territorial que ela possui. Na mesma altura, representante da Banda os Moyowenos, Domingos Mutambi, afirmara que “A falta de incentivos para promover iniciativas de músicos dificulta o surgimento de novos talentos e o desenvolvimento das artes na província da Lunda Sul” (Fonte: Jornal de Angola, 2013). Isto pode estar na base da letargia da banda em repitir sucessos como “Namuleleno”, que no início da década de 2000 registou um enorme sucesso nacional e além fronteiras.
Na sequência do passamento físico prematuro da cantora Sandra Fulikeno, nascida em Saurimo, vencedora do concurso de Música Popular Angolana «Variante», em 2013, com o estilo musical e dança Tchianda, urge a necessidade de reflexão profunda sobre a valorização e promoção constante de todos os fazedores de todas as formas de Arte Cokwe, sob pena de asfixiar-se o potencial dos jovens artistas e comprometer o desenvolvimento e a sobrevivência da Cultura e Identidade Cokwe. Lembro-me do talento e empenho musical dos irmãos Gregos, Sobrinho Euclídes, Mauro Doutor, do MC Baby Face, em Saurimo, que por falta de apoios consistentes não desenvolveram carreira musical digna deste nome.
Por conseguinte, em meu ver, dois instrumentos – a homenagem e o fomento da arte e cultura – podem reacender e/ou consolidar a veia artística Cokwe na Lunda Sul, bem como reforçar o orgulho de pertença à nossa identidade Cokwe no conjunto da nossa identidade angolana:
I.Homenagem
A nossa cultura de homenagem às figuras, cujos feitos contribuem para o desenvolvimento local ou nacional, é ainda emergente, mas pode ser acelerada e consolidada com pequenos passos firmes, constantes e regulares. Proponho, por isso, uma homenagem constante às figuras que se batem dia e noite pelas causas comuns, fortalecendo a identidade e cultura e senso de pertença comum, a começar pelas seguintes, que em meu entender, merecem uma homenagem pública em Saurimo:
1.A Banda os Moyowenos, pelo seu constante esforço em manter viva a nossa tradição e cultura.
2.Os Sassa Cokwe, pelo relançamento da música e dança folclórica Tchianda.
3.Sandra Fulikeno, por ter dado à Tchianda um prémio nacional em 2013 e pela sua coragem e paixão pela Tchianda, não obstante a jovem idade.
4.Yola Araújo, por ter assumido a sua descedência cokwe e pelo contributo ao desenvolvimento da música nacional.
5.Dji Tafinha e Sacró Q Kuia, pela inspiração aos novos talentos dos estilos que abraçam.
6.Os nossos mais velhos artesãos da Fina e do Tchikumina, pela beleza dos cestos, pentes e outros objectos, bem como pela formação da nova classe de artesãos da nossa sociedade.
7.Gabriel Tchiema e Tony Nguxi, pela persistência de uma carreira musical sem igual no music hall nacional, e pelo tratamento rafinado e meticuloso da Língua Cokwe, seus provérbios e mitos. Suas músicas são clássicos de toda a música cokwe.
8.Eduardo Kuangana, pela criação do PRS, o primeiro partido político na história de Angola Independente criado por um filho da Lunda, e pela sua luta no parlamento por um ideal de Estado Federal, que vezes sem conta foi mal interpretado como fomentador do regionalismo.
9.Rafael Marques, pela sua luta pela justiça e respeito dos direitos humanos em favor dos kamanguistas da Lunda, como demonstrado na sua obra Diamantes de Sangue: Corrupção e Tortura em Angola, 2011.
10.Pepetela, por imortalizar a Lueji, na sua obra Lueji,o nascimento de um império, 2014.
11.Eduardo Mingas, que do campo de basketball da Escola do II Nível de Saurimo transformou-se numa legenda do basketball não só angolano, mas africano e mundial.
Essas figuras podem ser homenageadas e imortalizadas dando seus nomes a avenidas, ruas e praças. Por exemplo, Rua Gabriel Tchiema e Tony N’guxi; Rotunda dos Moyowenos; Parque Infantil Yola Araújo Avenida Os Sassa Cokwe. Pode também ser considerado oportuno a ereção de estátuas e bustos em memória dos antigos Mwanaganas pelas cidades e munícios; renomear escolas, edifícios e instituições em seus nomes, por exemplo Campo de Basket «Eduardo Mingas», Palácio da Justiça «Rafael Marques»; Prémio da Leteratura Infanto-Juvenil da Lunda «Pepetela», ou mesmo instituir-se o Prémio de Música e Dança Tchianda «Sandra Fulikeno».
II.Fomento da Arte e Cultura
A arte e cultura de um povo, se não é fomentada, ensinada e conservada por meio de políticas públicas, programas e projectos exequíveis, desaparece gradual e lentamente. A promoção e/ou consolidação das seguintes iniciativas pelas autoridades provinciais e da sociedade local, pode contribuir no fomento da arte e cultura cokwe:
1.Promover de forma metódica o ensino da língua nacional cokwe. Pela transversalidade do idioma entre os povos da região, os governos locais podem criar o primeiro Instituto da Língua Cokwe, dedicado ao ensino da língua às novas gerações e demais interessados e estudiosos, como acontece por exemplo com o Swahili na Tanzânia.
2.Fomentar e apoiar iniciativas que fomentem a arte e a cultura, satisfazendo às solicitações da Banda os Moyowenos e demais artistas da província. Por vezes, um simples apoio institucional pode fazer muita diferença.
3.Criar Escolas de música e dança Tchianda e de outros géneros.
4.Promover movimentos de Leteratura Infantil e Jovenil, com sessões de encontros regulares ou semanais.
5.Criar núcleo provincial da UEA-União dos Escritores Angolanos, se ainda não existe.
6.Implantar e apoiar estúdios musicais, que pratiquem preços de gravação bonificados pelo governo provincial.
7.Fomentar o teatro e promover exibições públicas regulares.
8.Criar Feiras Anuais de Arte e Cultura, com o envolvimento de todas as formas de artes. As Feiras podem ser locais ou regionais, com participação da Lunda Norte, Moxico, Kuando Kubango.
9.Inscrever os artistas nas associações de categoria e salvaguardar os seus direitos autorais. Se não existe, uma Associação de Artistas da Lunda Sul ou da região pode ser determinante na promoção da cultura, defesa dos interesses da classe e ao mesmo tempo tornar-se o interlocutor da classe perante as autoridades locais e consumidores.
10.Promover concursos de leitura infantis e juvenis.
11.Promover concursos anuais ou bianuais nas categorias de música, dança, leteratura, cinema, escultura e artesão, e garantir bolsas de estudo internos para cursos de superação.
Tanto a homenagem regular, quanto o fomento estruturado e constante podem evolver-se num verdadeiro movimento de Renascimento da Cultura Cokwe e com ele podem inclusive nascer e afirmar-se pequenas e médias indústrias do sector, contribuindo para a professionalização dos artistas, aumento do emprego e combate a pobreza material e imaterial na região, tendo em conta que quando um povo promove a arte, a arte promove o povo!
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