A faixa de Taiwan, que separa a China Taipei (Taiwan) e a China continental (RPC), tem estado no centro de exercícios militares navais e aeronáuticos que simulam ataques e contra-ataques entre os dois exércitos paralelos nos últimos meses. Será isto sinal de uma rota de colisão militar entre ambos os países? Como recalibrar a Ambiguidade Estratégica e a One China Policy para uma reunificação pacífica entre China e Taiwan?
Mesmo povo, desunido pelas ideologias antagónicas
O território de Taiwan foi conquistado pelo Império Nipónico durante o que a historiografia considera como a Primeira Guerra Sino-Janonesa de 1894-1895. Todavia, a China continental sempre considerou Taiwan como parte inalienável do seu território, cuja população local é, grosso modo, da mesma ascendência étnica que a da China continental. O Império Nipónico, por seu turno, operou transformações estruturais e administrativas no Taiwan durante mais de 40 anos, que o tornaram um importante centro de experimento e sucesso económico, político, democrático e militar às portas e no sentido anti-China.
As convulsões político-militares dos anos 30 e 40 do século XX fragilizaram a tutela japonesa sobre Taiwan em favor da China continental, graças à Segunda Guerra Sino-Japonesa combatida no território da chinês entre 1931 até ao derrube do regime nipónico, bem como ao apoio das potências ocidentais reunidas em Cairo em 1943 relativo a destituição de Taiwan à China continental. Contudo, esse reconhecimento aconteceu numa altura em que os dois movimentos nacionalistas chineses – o Partido Comunista Chinês (PCC), liderado por Mao Zedong, e o Partido Nacionalista, conhecido por Kuomintang, liderado por Chaing Kai-shek – se confrontavam numa guerra civil pelo domínio sobre a China, sustentados externamente pela União Soviética e pelo bloco ocidental, respectivamente. A vitória militar de Mao Zedong sobre seu oponente provocou um êxodo maciço dos nacionalistas para Taiwan no seguimento da proclamação da República Popular da China (RPC) em Outubro de 1949, sob a guia do PCC.
Reconhecimento internacional da soberania chinesa sobre Taiwan
O domínio político-militar de Kuomintang sobre Taiwan contribuiu na formação e/ou consolidação de um Estado de facto e de jure, com instituições republicanas próprias e uma rede de relações diplomáticas que jamais foram reconhecidos pela RPC. Aliás, enquanto a missão histórica de Chiang Kai-shek e dos seus herdeiros político-militares compreende o regresso triunfal na China continental e a sua democratização, a da China continental, comunista, que considera Taiwan uma província rebelde, é a sua reunificação com a Mãe Pátria.
Maximizando as desavenças havidas entre a RPC de Mao Zedong e a URSS de Nikita Krhuschev nos anos 60, bem como uma maior aceitação internacional sobre o status quo de Taiwan antecedente ao ano de 1895, a República Popular da China viu-se integrada no Conselho de Segurança em 1971, em substiuição de Taiwan, atravé da Resolução 2758, de 25 de Outubro de 1971, que pugnou pela mudança da representação da China na ONU.
Reconhece-se que essa mudança de representação chinesa na ONU insere-se, em parte, no âmbito da chamada «Ping-Pong Diplomacy», quando em Abril de 1971 equipas de Ping-Pong chinesa e estado-unidense realizaram uma série de jogos amistosos, que simbolizaram o rapprochement entre as duas nações, coroado pela visita de Estado de Richard Nixon à China em Fevereiro de 1972, a primeira de um Presidente dos EUA, passo importante para o restabelecimento das suas relações diplomáticas anos mais tarde.
«One China Policy» e «One Country, Two Systems»
A substituição de Taiwan na ONU em 1971, as relações diplomáticas e comerciais estabelecidas desde a proclamação da República Popular da China com seus pares a nível internacional, bem ainda o reconhecimento da RPA pelos Estados Unidos durante a Administração Carter, em 1979, tudo isto significou deslegitimar a condição de Estado (de jure) e da missão histórica que Taipei se propunha realizar, além de produzir efeitos dissuasores práticos que a tornaram cada vez mais isolada diplomaticamente, enquanto a China continental solidificou ulteriormente a sua legitimidade internacional sobre aquele território.
Assim, se para o mundo exterior à Chian o princípio de «One China Policy», isto é, Uma Única China (incluindo Taiwan e os territórios reintegrados na geografia chinesa em finais de 1990, em particular, Hong Kong e Macau) pode ter começado no momento do reconhecimento formal e do estabelecimento das respectivas relações diplomáticas; a nível multilateral na ONU em 1971; e a nível bilateral com os EUA só em 1979, para RPC, por seu lado, este princípio justifica-se no regresso às fronteiras de 1894, no apelo lançado pela Conferência de Cairo de 1943 e no advento da RPC em 1949.
Contemporaneamente, a RPC não podendo deixar de reconhecer a existência e a consolidação em Taiwan de um regime político diferente, democrático e mais liberal do que o seu, a provável reunificação por via pacífica com aquele território não pode anular aquela realidade. É aqui que se pode inserir o outro princípio, o de «One Country, Two Systems», ou seja, Um País, Dois Sistemas. Um País: a China; Dois Sistemas: o sistema da China Comunista e o sistema da China democrática, garantindo à Taiwan a relativa autonomia em assuntos internos, assim como a Hong Kong e Macau, porém atribuindo ao Governo Central Chinês as prerrogativas em matéria de segurança e da política externa de toda a China. contudo, a validade deste princípio parece revelar-se impraticável pelas autoridades de Taiwan, em particular no seio de novos partidos, como é o DPP-Partido Democrático Progressista, e de novas lideranças políticas, como a actual Presidente de Taiwan e do DPP, Tsai Ing-wen, que premem pela plena independência do território e da sociedade taiwaneses das pretensões chinesas.
Reunificação da China até 2049
A reunificação da China continental com Taiwan prevalece como o maior objectivo estratégico da República Popular da China desde 1949, isto é, desde a proclamação da China comunista.
Apesar de vários presidentes chineses que se sucederam a Mao Zedong, passando pelo Deng Xiaoping, Jiang Zemin e Hu Jintao terem privilegiado a via da reunificação pacifica, justificada, em parte, pela ainda persistente fragilidade económica e militar da China, a actual liderança chinesa de Xi Jinping parece bastante determinada em proceder com a reunificação quer por via pacífica, quer por via militar, graças a um military build up das últimas duas décadas, que tornaram a China uma verdadeira potência militar na Ásia e Pacífico e no mundo, em rivalidade com as potências tradicionais do século passado.
«Ambiguidade Estratégica» e aumento da tensão entre EUA e China sobre Taiwan
Neste momento, um dos principais containment estratégicos que dissuade a China continental de iniciar um ataque militar tendente a reunificação com Taiwan é, essencialmente, a Ambiguidade Estratégica dos Estados Unidos, que, de um lado, reconhece a One China Policy, mas de outro, mantém o seu cometimento em defendê-la em caso de ataque militar da parte da China.
Um dos primeiros eventos dessa ambiguidade remonta ao ano de 1996, quando a Administração Clinton enviou um porta-aviões na faixa de Taiwan para conter os exercícios militares chineses durante a liderança de Zemin, promovidos em retaliação à uma maior abertura do Presidente de Taiwan, Lee Teng-hui, em relação aos Estados Unidos. todavia, essa tomada de posição da Administração Clinton não foi fundada no Pacto de Defesa Mútua assinado em 1955 e que deixara de vigorar em 16 anos antes, isto é em 1980, na sequência do estabelecimento das relações diplomáticas entre os EUA e a RPC, bem sim no Taiwan Relation Act de 1979 do Congresso dos EUA, que autorizou o governo estado-unidense a agir em defesa de Taiwan em caso de ameaça ou reunificação não pacífica com a China.
De facto, esta norma de 1979, além de encerrar uma ambiguidade em si – visto o estabelecimento de relações diplomáticas com a China continental – é também uma estratégia defensiva em antítese à One China Policy em caso de tentativa de reunificação da China com Taiwan por via militar, pois tal eventualidade implicaria o alinhamento dos EUA ao lado de Taiwan.
Por isso, do ponto de vista pragmático, considerando que a via pacífica torna-se cada vez mais impraticável, dada a consolidação do sentimento independentista no seio do DPP e das forças armadas de Taiwan, a China continental pode recalibrar uma nova estratégia que evite um confronto militar directo com os EUA, ao mesmo tempo que realiza o seu objectivo estratégico no âmbito da comemoração do centenário da fundação da República Popular da China, e assim protelar a via militar e confronto directo com os EUA, maximizando, inclusive, a ambiguidade estratégica que os colocam uma situação delicada na sua relação pragmática com a China e a tutela de princípio e valores democráticos comuns com Taiwan.
Neste momento de alta tensão militar permanente naquela região, a recalibragem pode, também, significar uma constante oposição às visitas oficiais ao território taiwanês de altas figuras dos Estados Unidos em posição de poder, pelo simbolismo que carregam no apoio ao sentimento independentista naquele território, além de desencorajar as remessas de armamento ao seu exército. As contrariedades da visita de Nancy Pelosi, Presidente da Câmara dos Deputados do Congresso dos Estados Unidos, à Taiwan, podem reflectir isto mesmo, numa altura em que a China de Xi Jinping, que se prepara para a sua reconfirmação para um terceiro mandato presidencial, advertiu os EUA de Biden a «Não brincar com o fogo» durante o último encontro mantido por via telefónica no passado dia 28 do corrente ano. O 20º Congresso do PCC, a realizar nos próximos meses, além de reconfirmar Xi Jinping para um terceiro mandato inusual, poderá, provavelmente, enfatizar o objectivo estratégico de reunificação com Taiwan até 2049, quiça durante a liderança de Jinping. Se tal se materializar por via militar, então, o mundo correrá o risco de guerra nuclear, sobretudo se os Estados Unidos se mantiverem fiéis aos princípios assumidos em 1979 e que Presidente Joe Biden se tem mostrado pronto a observá-los, ao afirmar, em dadas ocasiões, que em caso de invasão chinesa de Taiwan os Estados Unidos interveriam militarmente ao seu lado, ainda que por vezes venha desmentido pelo seu staff diplomático (a ambiguidade estratégica).
Seja como for, em caso de reunificação com a China, o status quo conquistado pelo Taiwan, no domímio democrático e das suas liberdades civis e políticas, era ideal se fosse salvaguardado, até para servir à China (reunificada) como modelo de um sempre provável experimento democrático e neo-liberal, embora os últimos eventos de uma maior restrição de movimento contestário em Hong Kong revele um trend contraditório.
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