Em Maio de 1958 Frantz Fanon publicou uma carta dirigida à juventude africana. Trata-se, essencialmente, da juventude anti-colonialista organizada em movimentos de libertação nacional e independência. Mas essa carta, pelo tom crítico a certos indivíduos e às atitudes pró-colonialistas, a sua mensagem é ainda válida nos dias de hoje?
Um médico ao serviço da liberdade e do humanismo universal
É consabido que Frantz Fanon, após ter concluído seus estudos na Faculdade de Medicina em Leon, com especialização em psiquiatria, transferiu-se de França para o Sul da Argélia, em 1954, onde praticou a sua profissão junto do Hospital Blida-Joinville, e não só.
Tratando-se de um contexto marcado pela contestação do predomínio colonial, e sendo que a Front de Libération Nationale (FLN) argelina fundou-se no mesmo ano em que se transfer para o Norte de África, Fanon aproximou-se a este movimento e integrou a sua luta pela libertação argelina do colonialismo francês. Todavia, na sua óptica, a libertação argelina deveria ser enquadrada no amplo movimento de libertação dos povos de África e vice-versa. Aliás, representando a Argélia no I Congresso Pan-Africano de Todos os Povos de África, em Accra, em Dezembro de 1958, Fanon manteve encontros emancipatórios com os já e os futuros líderes de África independente, com realce ao anfitrião Kwame Nkrumah. A Historiagrafia revela que manteve encontros similares com Holden Roberto e Agostinho Neto.
Lettre à la jeunesse africaine de Frantz Fanon
Publicada a 29 de Maio de 1958, no maganize El Moudjahid, órgão de informação da FNL, o contéudo desta carta integra, hoje, o leque dos chamados “Escritos Políticos” de Frantz Fanon. Essa carta pode ser entendida em dois momentos: no primeiro momento Fanon introduz uma série de postulados imperativos sobre a necessidade da libertação da Argélia e dos demais povos, asseverando, por exemplo, que “Os povos oprimidos devem juntar-se aos povos já soberanos, para que se possa construir um humanismo à escala do universo” (Fanon, Pour la révolution africaine. Écrits politiques, 2001:136).
Na segunda parte o autor manifesta-se contra o esquema da mera substituição da União Francesa, que vigorava desde 1946 (ver Limes. Revista Italiana de Geopolítica) pela Comunidade Francesa, que o referendo constitucional francês de 28 de Setembro 1958 (constituição aprovada a 4 de Outubro) adoptará como um estrategema que manterá a influência francesa sobre os neo Estados no pós-colonialismo. Aliás, manifestando-se contra tal estrategema, numa outra carta denominada Appel aux Africains, publicada no El Moudjahid, a 17 de Setembro de 1958, isto é, 11 dias antes do referido referendo, o combatente franco-martinicano-argelino afirmava que «Na realidade, graças à operação do referendo, o general de Gaulle submeteu todas as “possessões francesas” a um processo de domesticação voluntária por tempo indeterminado», questionando-se: “Antes de mais, como é que o referendo se apresenta em relação às aspirações nacionais africanas?” (Fanon, 2001:154).
Voltando à segunda parte da Lettre à la jeunesse africaine, diga-se que Fanon atacou a hipocrisia e o apoio dado pela intellighenzia africana ao referendum e as suas implicações pela total libertação dos seus países. Vejamos em síntese algumas passagens e contrariedades do autor:
«“Há alguns dias, o Sr. Houphouët-Boigny, deputado africano e Presidente da RDA, deu uma entrevista à imprensa. Depois de algumas considerações absurdas sobre o desenvolvimento desejado de uma África vestida com a bandeira tricolor, passou a falar da questão argelina e não hesitou em afirmar que a Argélia deveria permanecer no quadro francês.”
(…) “O Sr. Houphouët-Boigny era o caixeiro-viajante do colonialismo francês e não tinha medo de ir às Nações Unidas defender a tese francesa” . (…)
“Nos últimos dez anos, tornou-se intolerável e inaceitável que os africanos tenham assento no governo do país que os domina”» (Fanon, 2001:139-140).
Excepto Sekou Touré, que proclamou a independência da Guiné e não integrou a Comunidade Francesa de acordo com a constituição de 4 de Outubro de 1958, Frantz Fanon criticou não só a conivência de Boingy, que será presidente da Costa de Marfim entre 1960 e 1994, de Léopold Sédar Senghor, deputado na Assembleia nacional francesa entre 1946 e 1958 e futuro presidente do Senegal entre 1960 e 1981, como também de Aimé Césaire, na altura deputado pelo partido comunista na assembleia nacional francesa da IV República pela Martinica, e dos demais. Particularmente a Césaire, Liliana Ellena, que fez a introdução da versão italiana da obra Les damnés de la terre, relata que “após a posição favorável de Aimé Césaire no referendo gaullista nas colónias ultramarinas francesas, amadureceu a ruptura política com este último” (Ellena, 2007: p.xxxii).
Leitura de Lettre à la jeunesse africaine de Frantz Fanon, hoje
Provavelmente se poderá questionar a legitimidade contextual desta carta de Fanon nos dias de hoje, em África e no mundo inteiro, sendo ele uma personalidade transnacional e um dos autores mais proeminentes do século XX quando se trata do estudo e da prática do anti-racismo e anti-colonialismo, e do humanismo, em geral.
Todavia, além de ser uma fonte directa para o estudo do pensamento político e pan-africano e do humanismo, a carta é, igualmente, um apelo a classe política e a classe dirigente do risco permanente de alienação dos interesses nacionais para o benefício individual e/ou de parte. A luta de classe em África, e como concebida por Kwame Nkrumah, não deve subalternizar os interesses nacionais aos interesses da burguesia neo-colonialista, sob pena de perigar a prosperidade comum, a unidade nacional e a estabilidade política.
Não se trata apenas de um compromisso ético-moral e do humanismo local, mas a necessidade de forjar classe política protectora dos interesses nacionais, da liberdade e da fraternidade entre os povos é um compromisso do humanismo universal e que foi um farol que guiou a luta de libertação de Frantz Fanon. Pelo risco permanente do neo-colonialismo camuflado de várias formas, Fanon diria, ontem como hoje: “Juventude africana! Juventude malgaxe! Juventude das Caraíbas! Juntos, temos de cavar a sepultura em que o colonialismo se afundará de uma vez por todas!” (Fanon, 2001:141). Pelo risco de neo-colonialismo e neo-imperialismo 2.0, o conteúdo da mensagem da Lettre à la jeunesse africaine de Frantz Fanon, embora lida num contexto a posteriori e com outros autores em causa, o seu espírito é actual e actuante para os povos de África e do mundo.
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