O governo angolano observa no espírito e na letra os princípios do Acto Constitutivo da União Africana (ACU), a Declaração de Lomé de 2000 e outras resoluções relativas às Mudanças Inconstitucionais de Governos (MIG). Contudo, por que é necessária uma interpretação calibrada entre esses princípios e o pragmatismo com base em cada contexto, em particular nos casos do Níger, Burkina Faso e do Mali?
Defensor de mudanças constitucionais de governos
É consabido que em Maio de 2022 o Estado angolano foi promotor de uma cimeira extraordinária da União Africana, realizada em Malabo, centrada nas abordagens relativas ao Terrorismo e às Mudanças Inconstitucionais de Governos, que sublinhou a necessidade do respeito do estado democrático, do acesso ao poder através de eleições e de não reconhecimento às juntas militares instaladas no poder através de golpes de Estado.
Dito de outro modo, a cimeira de Malabo de 2022 – que integrou na sua resolução final as conclusões da CEDEAO relativas ao fenómeno e às eventuais formas de estabelecimento de Forças Militares de Interposição da Ordem (que violaria a alinha f) do artigo 4º dos princípios do ACU) – voltou a sublinhar a relevância e a actualidade dos princípios contidos na Carta de Lomé aprovada em Julho de 2000, que elenca 4 factores que definem as MIG e 9 princípios para a promoção de regimes democráticos, além de 2 fórmulas para a reposição de governos civis e, preferencialmente, democráticos.
Limites intrínsecos no ACU e da Declaração de Lomé
Próprio do carácter “transitório” de leis, normas e princípios orientadores do agir colectivo de um grupo, um Estado ou uma organização, quer o ACU, quer a Declaração de Lomé, e demais resoluções da UA afins, não previram e nem inseriram as alterações constitucionais para o prolungamento de mandatos presidenciais como que equivalentes às MIG, nem tampouco conceberam a legitimação popular de algumas MIG como formas de poder popular reparadoras das primeiras, sendo a democracia um regime de poder baseado na soberania popular.
No primeiro caso, as alterações às constitucões para 3º ou mesmo até mandatos ilimitados não só configuram uma violação do rule of law e da alternância política do poder em regimes democráticos, como também substituíram-se aos golpes de Estado, passando a ser os novos métodos de acesso directo e perpetuação no poder. Nalguns casos, inclusive, são evocadas como motivos e/ou pretextos dos golpes de Estado, como se viu recentemente no Gabão, com Ali Bongo Ondimba destituído pelos militares logo após ter sido declarado vencedor das eleições presidenciais de Agosto último, que o conduziriam ao um 3º mandato desde 2009.
No segundo caso, alguns golpes de Estados decorrem das manifestações e exigências populares contra o poder instituído democratica ou autoritariamente, percebido como perpetuador de injustiças sociais ou incapaz de garantir a segurança e integridade dos seus países, o que fragiliza e corroe a sua legitimidade e legalidade. Aqui, os militares aparecem como a única alternativa viável para a garantia da ordem pública, sobretudo em contextos onde os partidos políticos da oposição são combatidos pelo poder e as organizações da sociedade civil são incapazes ou impedidos de exercer a sua advocacia social e política pelas entourages pré-estabelecidas e, algumas vezes, acusadas de buscarem suas legitimidades mais fora do que dentro.
De facto, além de ser contrária à alinha f) do artigo 4º sobre princípios do ACU, que proíbe o uso da força ou ameaça do uso da força entre os Estados-membros da União Africana, uma das críticas movidas contra provável intervenção militar da CEDEAO no Níger para repôr o Presidente Mohamed Bazoum, deposto em finais de Julho do corrente ano, foi o facto de existirem naquela região presidentes que alteraram constituições para 3º ou mandatos ilimitados (Côte d’Ivoire e o Togo), ou que são herdeiros de regimes golpitas do passado e que mantém-se continuativamente no poder desde a década de 1960 (Togo), ou ainda porque alguns regimes actuais, mesmo se tidos democráticos, são acusados de perseguição política contra os principais opositores (Senegal).
Mera condenação e observância de princípios não trazem mais-valia à PEA e não impedem as MIG
Compreende-se a condenação que o Estado angolano vem fazendo aos golpes de Estados na CEDEAO e o seu comprometimento aos princípios da União Africana em matéria das MIG. Todavia, por ser um fenómeno bastante complexo, a Política Externa de Angola (PEA) não deveria apenas limitar-se à mera condenação e ao apelo ao regresso da ordem ferida, pois, de um lado, não é isso que acontece, dado que os golpitas continuam no poder independentemente da condenação feita por Angola ou por demais Estados. De outro lado, pode indicar a inflexibilidade de readaptação da PEA aos novos fenómenos sócio-políticos em África e no mundo, que exigem uma interpretação e posicionamentos calibrados e inusitados, mas necessários ao contexto.
Olhemos para o caso da crise pós-eleitoral de 2010 em Côte d’Ivoire entre L. Gbagbo e A.Ouattara, quando o antigo Presidente José Eduardo dos Santos, em pleno respeito dos princípios de não ingerência e de não mudanças inconstitucionais de governos, defendeu os enunciados da Corte Suprema ivoirense que reconhecia a reeleição de Gbagbo como sendo presidente constitucionalmente eleito face a posição da CEDEAO e seus parceiros internacionais que, contrariamente, defenderam a de Outtara, resultando na intervenção militar que o levou ao poder em detrimento de Gbagbo. Ora, se lermos àquele posicionamento de Angola à distância de 13 anos, compreende-se, claramente, que enquanto a sua posição seguia um mero cumprimento de enunciados da União Africana, a posição de outros intervenientes seguia, também, a lógica da prossecução dos seus interesses, o que, em parte, justifica o facto de os mesmos actores não terem condenado a alteração à constituição ivoirense que conduziu Presidente A. Outtara ao seu actual terceiro mandato.
Como Angola pode recalibrar-se entre princípios e pragmatismo
Nesta onda de golpes de Estados, nem tudo é golpe, na medida em que existem golpes de Estado que são meros assaltos ao poder e outros que são revoluções populares.
Daqui, o passo fundamental da recalibragem entre princípios decorrentes dos documentos acima enunciados e o pragmatismo da acção de política externa de qualquer Estado radica da compreensão propedêutica e hermenêutica entre assaltos ao poder e revoluções populares, como ilustramos no artigo precedente que podem consultar aqui.
Uma vez determinada essa distinção, o Estado pode calibrar de forma teleológica quer o seu posicionamento, quer os seus interesses nacionais e pan-africanistas. Isto é, se determinar que se trata de um mero assalto ao poder, que não alterará o status quo ante, excepto a mudança da elite (ex. golpe de Estado no Gabão), o Estado pode manter-se fiél àqueles enunciados enquanto o golpe de Estado fere os princípios democráticos de acesso ao poder através de eleições.
Porém, se determinar que se trata de uma revolução popular, que muda a correlação de forças internas e externas, o Estado pode tomar partido da nova realidade sócio-política através da actuação de uma espécie de ambiguidade estratégica (aplicando a fórmula à renúncia impossível de Agostinho Neto, isto é, negar para afirmar), ou seja, reafirmar o cumprimento dos princípios do ACU, da Declaração de Lomé e das recomendações de Malabo, mas ao mesmo tempo apoiar a causa da revolução quer em termos políticos e culturais, quer em termos económicos e comerciais, por meio da expansão do Feito Em Angola e cobrir, assim, o vazio de acesso a bens e serviços causado pelas sanções impostas pela CEDEAO ao Níger, Mali e Burkina Faso; participar, quiçá, de investimentos em de minérios estratégicos presentes aí, além de inserir-se num contexto geopolítico, cujas ameaças à paz e segurança podem beneficiar da longa experiência que Angola possui, derivante tanto da guerra civil vivida e resolvida, quanto de resolução dos conflitos padronizados.
Aliás, a tradição da PEA de Angola sempre demonstrou e implementou actos destinados ao contributo às várias causas africanas de libertação dos povos do continente de quaisquer formas de dominação colonial e/ou neocolonial, como, de resto, dizia o Presidente Neto: “Não podemos considerar o nosso país verdadeiramente livre se outros povos do continente se encontram ainda sob o jugo colonial” (Michela Graziani, La voce africana di Agostinho Neto, p. 228, in Noi dell’Africa immensa. Nuove letture della poesia de Agostinho Neto, a cura di Giorgio de Marches, 2022).
Em suma, a calibragem entre princípios e pragmatismo pode ser, inclusive, uma forma audaz de observância daqueles enunciados da União Africana, e um contributo efectivo ao fortalecimento de instituições democráticas nos Estados onde ocorrem golpes de Estado.