Tentativa de compreensão de golpes de Estado em África: revoluções ou assaltos ao poder?


A África Sub-sahariana tem vindo a assistir a dezenas, senão, centenas de golpes de Estado – ou presumíveis tais – desde o advento do Estado pós-colonial. Algumas regiões são mais susceptíveis a esses golpes do que outras. O que tem havido são mesmo golpes de Estado? Ou são assaltos ao poder? Como interpretar as alterações às Constituições para terceiros ou mais mandatos presidenciais? Como se relacionam esses golpes de Estado e/ou assaltos ao poder uns aos outros: o que houve no Níger em 2023 é semelhante ao que acontecera na Líbia em 1969?


Golpes de Estados contemporâneos

Os golpes de Estados contemporâneos podem ser considerados como sendo de fabrico francês, num contexto particular da história daquele País: a Revolução Francesa e os efeitos da ingovernabilidade que lhe acompanhou no pós-ancient régime, com a execução do rei Luís XVI. O desastre da curta República Jacobina (1792-1794), mergulhada no que a historiografia considera como Terror, abriu brechas para o golpe de Estado de 18 Brumaio (2 de Novembro) de 1799, orquestrado por Sieyès e os irmãos Luciano e Napoleão Bonaparte, que se manterá no poder durante o chamado Consulado (até 1804) e o Império (até 1814).

A restauração da monarquia de Bourbon (1815-1830), seguida pela monarquia constitucional, viu a ascensão de Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho de Napoleão Bonaparte, ao cargo de presidente (1848-1851), o que não lhe impediu de efectuar outro golpe de Estado e se auto-proclamar imperador francês, isto é, Napoleão III, entre 1852 e 1870, período que marcou profundamente a história e a vida das sociedades francesa e europeia.

Ao longo do século XX verificaram-se outros golpes de Estados e inúmeras outras tentativas. Basta pensar ao golpe de Estado de Kapp contra Bauer, durante a República de Weimar, quando na “Noite entre 12 e 13 de Março de 1920, alguns destacamentos de tropas do Báltico, recolhidos em Berlim sob ordens do General von Luttwitz enviaram um ultimatum ao governo de Bauer, ameaçando de ocupar a capital se não cedesse o poder para Kapp” (Malaparte, 1931:78); o golpe de Estado de Lenin e Trotzki contra Kerenski, em Outubro de 1917, na Rússia, que ditou o predomínio do regime marxista-leninista. Contudo, com a morte de Lenin em 1924, a ascensão de Stalin significou uma gradual marginalização de Trotzki que, após ver negado o pedido de residência em França, se auto-exilou no México. Em 1968 será publicado livro póstumo de Leon Trotzki, A Revolução traída, em que espelha a sua decepção com o advento do Stalinismo e a deturpação dos ideias da revolução de Outubro de 1917: “Mas se o poder socialista é ainda absolutamente necessário à conservação e ao desenvolvimento da economia, a questão de saber sobre quem se apoia o poder soviético hodierno e em qual medida seja assegurado o espírito socialista da sua política, torna-se muito mais séria” (Trotzki, 1968:229).

Golpes de Estado em número, frequência e geografia

Patrick J. McGowan (2003) estimava há duas décadas 80 golpes de Estado, 108 golpes de Estados falhados e 139 conspirações de golpe de Estado nos 48 Estados da África Sub-sahariana, entre 1956 e 2001 (p.339), indicando o período de maior frequência entre 1966 e 1970 com “17 golpes realizados e 6 falhados” (p.351), seguido ao que vai entre 1976 e 1980 com “15 golpes realizados e 15 falhados” (ibidem), distribuídos em – incluindo golpe realizados e falhados – “85 na África Ocidental, 53 na África do Norte, 26 na África Central, 13 no Índico e 11 na África Austral” (p.356).

Naturalmente, as notas acima, relativas às origens contemporâneas dos golpes, não se destinam a justificar nem a dar a essência aos golpes de Estados verificados em África, porquanto cada golpe é uma realidade distinta da outra. Não existem dois golpes iguais, nem pelo contexto, pelas razões, nem pelos autores. Todavia, a luz dos estudos de McGowan, se pode deduzir que as regiões que revelam maior tendência para golpes de Estados são as que estiveram sob domínio colonial francês.

Embora isso não revele uma relação conclusiva de causa-efeito directamente proporcinal, pode, ainda assim, nos levar a uma série de interrogações: isto é, 1. se existe uma correlação entre a herança colonial francesa e os constantes golpes de Estados na África Ocidental e Central; 2. se esses golpes tem causas profundamente internas ou se decorrem de ramificações externas; 3. visto que os golpistas são, geralmente, pessoas de tez africana, será que as derivações externas fazem sentido; 4.ou o seu sentido poderá estar assente na possibilidade de tais golpistas efectuarem golpes à la carte; 5. se for isso, o que a sociedade africana ganha com golpes “encomendados”; 6.o que distingue um golpe de outro?

Razões aparentes dos últimos golpes (Mali, Burkina Faso e Níger)

Não existem golpes iguais, quer pelo contexto e autores, quer pelas razões e motivações que os originam. Nem tampouco se os golpes causam a mesma reacção de apoio ou de condenação nacional, regional e internacional, muito menos pelos efeitos positivos que produzem para a sociedade ou pelo tipo de regime instaurado.

Comecemos pelo golpe de Estado contra Kwame Nkrumah, em Fevereiro de 1966,  embora não tenha sido o primeiro no pós-boom das independências, pois o 1º foi contra o Presidente togolês, Sylvanus Olympio, a 13 de Janeiro de 1963.

Em suas memórias, Nikita Khrushcev revelou o que pode ser lido como uma das causas do golpe contra o líder ganês. Segundo ele, “Depois da independência (…), todos os oficiais de seu exército permaneceram britânicos. (…) Mais tarde, em 1966, oficiais reacionários do exército de Gana desempenharam um papel no derrube do regime progressista em Gana. Tive várias conversas com Nkrumah sobre este assunto, tentando convencê-lo que havia um perigo constante presente na forma dos comandantes do seu exército que eram oficiais britânicos” (Khrushcev, 2007:883).

Enquanto o golpe contra Nkrumah lê-se nas ramificações identitárias externas dos militares envolvidos nele, o de 1969, protagonizado pelo coronel Kadaffi contra o rei Idris I, na Líbia, foi essencialmente assente em razões internas. Segundo Kadaffi, ‘As causas da revolução são múltiplas: sociais não menos que políticas, económicas não menos que históricas (…) que os moventes essenciais são o subdesenvolvimento em que se encontra o mundo árabe’ (Mechela Mercuri, in Libro verde, 2020:8).

Ora, os golpes de Estados recentes vistos no Mali, Burkina Faso e Níger, no estado actual podem ter sido causados por uma pluralidade de causas: no Mali, por exemplo, pela sentida incapacidade de lidar com a insurgência de grupos secessionistas de matriz islâmica no Norte; no Burkina Faso, para dar continuidade a revolução mutilada de Thomas Sankara, a julgar pelos pronunciamentos recentes do actual chefe da Junta Militar burkinabé, Ibrahim Traoré, na II Cimeira Rússia-África, ao passo que no Níger os fundamentos avançados pelos golpistas são de natureza económico-social. Contudo, existem fios ideológico-políticos e identitários que unem esses três casos: a). a emancipação pan-africanista num mundo multipolar e b). a solidariedade pan-africanista expressa pelas lideranças do Mali e do Burkina Faso, que manifestaram a intenção de aplicar o princípio da defesa colectiva, caso a CEDEAO avance com a intervenção militar para trazer de volta ao poder o presidente nigerino deposto pelos putschistes.

Existe, igualmente, a intenção de c). livrar-se dos resquícios do colonialismo, como é a transformação do francês da língua oficial para língua de trabalho no Mali; o pedido de retirada das tropas francesas do Burkina Faso e o fim de acordo nesse domínio datado desde 1961; ou ainda a saída do Mali do G5 do Sahel, além das manifestações populares em favor dessas medidas, que a França concebe como manifestação de sentimento anti-francês em África.

Contudo, muitos desses actos limitam-se ao campo político-militar e ao simbolismo de transformação económica, pois, contrariamente a revolução de Kadaffi, que nacionalizou os recursos energéticos do país, colocando-os ao serviço das populações, que lhes proporcionou um nível de vida melhor, com rendimento médios anuais superiores a muitos países do Norte Global, essas juntas mantém, grosso modo, os interesses económicos e corporativos adquiridos no passado.

Golpes de Estados, assalto ao poder ou revoluções

Embora pareçam sinónimos, os golpes de Estados devem distinguir-se do assalto ao poder ou da mera substituição do presidente pela junta militar golpista.

Um golpe de Estado implica a tomada das instituições republicanas do Estado, a substituição da elite dominante pela elite golpista, a transformação das normas de jogo político e a evolução da sociedade. O assalto ao poder limita-se a substituir a figura central e representativa do poder público, sem que isso conduza a actuação dos factores característicos de um golpe de Estado revolucionário. E em que consiste este último?

Um golpe revolucionário consiste num golpe de Estado que vê implementadas reformas profundas do Estado, do seu regime, da sua relação com o demos, a transformação da economia e das forças produtivas para a satisfação das necessidades do demos e, por vezes, marcadamente contra os interesses pré-estabelecidos, cujo apoio popular é massivo e constante. O golpe Estado é, no caso, um meio, cujo fim é a revolução, que também se transforma num meio para a evolução da sociedade.

Tendo em conta isto, dos mais de 100 golpes de Estados realizados com sucessos, uma mínima parte foram golpes de Estado, de facto. Uma grossa parte foram e são uma mero assalto ao poder pelo poder, pois não alteraram o status quo ante, redundando-se em mera substituição da classe dominante pela via inconstitucional, que depois frustram aspirações populares e conduzem a novos assaltos ao poder.

O papel dos regimes presidenciais absolutistas no assalto ao poder

Independentemente da relação inconclusiva de causa-efeito directamente proporcinal, e das respostas afirmativas ou negativas as 5 série de interrogações acima expostas, existe um padrão do regime político que sobressai nos golpes e/ou assaltos ao poder. Isto é, este quadro de assalto ao poder é, em parte, fundado pelo presidencialismo puro galopante em África, bem como pelas reformas constitucionais para a extensão ou eliminação de limites de mandatos, criando um quadro permanente de incerteza republicana, fragilidade institucional e ansiedades públicas.

Dito de outro modo, se no contexto europeu do século XIX, “com a progressiva parlamentarização da vida moderna, o terreno particularmente favorável para aplicação da táctica de 18 Brumaio veio se alargando” (Malaparte, 1931:113), para o continente africano dos séculos XX e XXI, a presidencialização da sociedade e do Estado cria condições materiais e formais para o assalto ao poder, excepto nos casos em que os golpes de Estados redundam em revoluções que conduzam a evolução da sociedade, que são casos raros, senão inexistentes na África pós-Kadaffi. Quiçá, a parlamentarização dos regimes políticos poderia desencorajar golpes futuros quando esses são meros assaltos ao poder!

Issau Agostinho

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