A turbulência dos calculismos da filosofia e realismos políticos do passado no contexto actual


Nos últimos anos tornou-se bastante comum e frequente a noção «contenção» da emergência chinesa nas relações económicas com os seus principais parceiros do Norte Global. Contudo, antes da China houve o Haiti. Existem graus de desenvolvimento de uma sociedade do Sul Global admissíveis, além dos quais os calculismos realistas intervêm para os conter?


Contenção surge dentro de uma doutrina

Em Relações Internacionais e na Geopolítica, o termo contenção adopta-se dentro de uma doutrina de Estado, actuada pela sua Política Externa (comercial, de segurança, ideológica, tecnológica, cultural), a fim de previnar acções de terceiros Estados concebidos como contrários aos seus interesses nacionais.

Imaginemos a Doutrina Truman, promovida no imediato da Guerra de 1939-1945, a fim de travar a influência soviética tanto no contexto ocidental quanto no resto do mundo. Para Fernando Sousa (2005) “A forma de derrotar a estratégia soviética exigia, pois, uma política de firme contenção, delineada para confrontar os russos com um constante poder em todos os pontos em que se dessem sinais de invasão dos interesses de um mundo estável e pacífico (Kissinger)” (p.168).

Com a contenção exercida sobre URSS e demais regimes socialistas, a Doutrina Truman promovia os valores da democracia e do capitalismo a nível internacional. Se deria igualmente a nível da sociedade estado-unidense em si, se virmos o surgimento do que a historiografia local designa por McCarthyism, que vigorou desde a década de 1950 para expugar o que se concebia como infiltração do comunismo nas instituições federais e na sociedade daquele País.

Iluminismo relativista e o caso haitiano

O Iluminismo francês do século XVII em diante emerge numa altura em que a classe intelectual, burguesa e popular se empenha a combater a prevalência do absolutismo (no plano interno) na sua relação directa com os cidadãos franceses. Contudo, no plano externo (das sociedades submetidas a escravatura e colonialismo), este Iluminismo foi relativista, na medida em que não promoveu a libertação, sem condicionalismos, dos povos não franceses sob dominação e exploração e, nalguns casos, foi percursor das ideias políticas de libertação da escravatura e do colonialismo à la carte, que o Governo de De Gaulle utilizará na década entre 1950 e 1960 em relação à maioria das possessões coloniais em África Ocidental e Central: Isto é, descolonização como pressuposto da autonomia, mas não da total iliminação da influência e dos interesses franceses naqueles lugares (basta ver a gestão fiscal e monetária do Franco CFA, os acordos que garantiram bases militares francesas naqueles Países africanos, a francofonia, entre outros).

Contudo, sendo essa ideia política de libertação sem liberdade ou desconolizar com neo-colonialismo decorrente já na vigência do Iluminismo, a revolta em São Domingos em finais do século XVIII contra a escravatura francesa (liderada por aqueles que podemos considerar como sendo os primeiros abolicionistas da história universal, entre os quais o negro e crioulo Toussaint Louverture e Jean-Baptiste Sans Souci, negro de origem do Reino do Congo) significou uma primeira ruptura internacional do esclavagismo. Michel-Rolph Trouillot (1995) considera nos seus estudos que “Em Agosto de 1791, escravos do Norte de São Domingos lançaram uma revolta que depois se estendeu em toda a colónia e tornou-se uma revolução de sucesso que derrotou tanto a escravatura quanto a ordem colonial francesa” (p.37). Essa derrota consistiu no facto de os líderes revolucionários terem derrotado a expedição francesa enviada em 1882 pelo Napoleão Bonaparte, liderada pelo seu cunhado, Charles Leclerc, para conter (ou fazer contenção) a revolução, que culminou com a proclamação da Independência do Haiti em 1804, tornando-se o 1º Estado negro indipendente em todo mundo colonial da época.

Questionar-se-ia que fracassada a contenção napoleónica contra a libertação dos haitianos, em que consistiu a ulterior contenção da expansão da liberdade do Homem Africano? A resposta está na imposição do pesado tributo do governo francês ao neo-Estado hatiano.

Thomas Piketty (2022) revela que “Para os intelectuais «liberais», como Tocqueville ou Schoelcher, era óbvio: se os proprietários de escravos viram-se privados da sua propriedade (adquirida legalmente) sem compensação, onde terminaria essa situação perigosa?” (p.303). Terá sido dessa corrente de opinião dos intelectuais iluministas que, “Em 1825 o Estado francês impôs uma dívida consideravél ao País (300% do PIB haitiano da época) para compensar os proprietários franceses que perderam seus escravos” (idem). Segundo o mesmo autor e economista francês, “Os pagamentos feitos entre 1825 e 1950 estão todos bem documentados e não são questionados por ninguém” (idem).

Consequentemente, se o Haiti, hoje, é um Estado que está em condições económicas, sociais e de ordem pública problemáticas e caóticas, um dos factores contribuintes é a política de contenção actuada pelas autoridades francesas a partir do Iluminismo e mantida pelos governos “pós”-Iluministas, o que levou já o governo haitiano a “solicitar o retorno deste iníquo tributo (30 mil milhões de euros, hoje, que não incluem os interesses) e é difícil não concordar com eles” (Piketty, p. 304).

Conter a China é equivalente a conter o Sul Global?

No plano doutrinário, consta que alguns Estados do Norte Global estejam ou pretendam actuar políticas de contenção à emergência económica, tecnológica e militar da China, percebida como ameaça ao primato do Norte Global nesses sectores desde a segunda metade do século XX. Actualmente, essa contenção pode ser entendida como medida de des-globalização económica e financeira contrária à globalização em curso desde, pelo menos, o fim da Guerra Fria e a criação da OMC, com a Ronda Uruguai em 1994, o estabelecimento de organizações de cooperação económica com respectivas zonas de livre comércio e a de-localização da produção para os mercados emergentes, com a China transformada em Fábrica do Mundo.

Questionar-se-ia, como é natural, como podem os principais Estados do Norte Global implentar a contenção à China num contexto não equivalente ao da Revolução Haitiana?

Isto é, enquanto o Haiti emerge num contexto euro-atlântico-cêntrico e num mundo quase unipolar, sem organizações internacionais de tutela das soberanias nacionais, e com minor inter-dependência económica entre os Estados, a emergência económica da China surge num contexto multi-cêntrico, multipolar, com organizações de tutela de soberania, sendo ela Estado-membro do Conselho de Segurança, uma potência nuclear e numa época (apesar da des-globalização) de forte inter-dependência comercial, incluindo até entre a China e os EUA.

Além do mais, sendo a China o maior Estado do Sul Global em ascensão, a sua contenção poderá, inclusive, causar esfriamento das relações bilaterais e multilaterais entre os demais do Sul Global, incluindo a Índia (ideologicamente próxima ao Norte Global) e o Norte Global, que poderão ver nisso não só uma tentativa de desencorajamento de desenvolvimento económico das suas economias e do progresso soberano das suas sociedades, como também uma violação dos princípios, normas e compromissos internacionais que promovem o desenvolvimento das sociedades e dos Direitos Humanos centrados no desenvolvimento sustentável (basta ver os 18 ODS, a Declaração da Assembleia Geral da ONU sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986 ou os dois Pactos dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Económicos e Sociais da Nações Unidas, em vigor desde a década de 1970).

Em poucas palavras, a filosofia e o realismo políticos dos séculos XVII em diante são, hoje, uma fonte de turbulência nas relações internacionais, sobretudo quando pretendem manter uma visão antropo-cêntrica (quase pseudo-divina e psedup-supremacista) do domínio das relações entre os Estados, numa altura em que essas relações exigem (realisticamente e/ou idealisticamente) uma visão institucional e multipolar (quase humanista e igualitária de raça e de classe), congregadora da comunidade internacional (na sua diversidade cultural e filosófica) para a prossecução dos seus desafios globais,  pois a filosofia e realismo políticos do século XXI em diante devem ser chamados como Multi-Centrismo Pacifista e Humanista, respeitando os equilíbrios de poder constituídos nos últimos 70 anos, que desencorajam a implementação da Doutrina de Destruição Mútua Garantida, que levaria, no final, a soma zero e a destruição da humanidade como a conhecemos até a data presente.

Issau Agostinho

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