Notas sobre a cooperação internacional no domínio da formação de quadros Instrumento de Poder Brando? (2/2)


A cooperação internacional no domínio da educação e da formação de quadros constitui uma prioridade das políticas e diplomacias das nações e dos programas e missões de Organizações Internacionais e Regionais, cujas finalidades e beneficiários variam de nação e/ou de organização e das suas visões geostratégicas e geopolíticas ou, simplesmente, dos seus compromissos humanitários.


Vejamos sucessivamente alguns dos compromissos assumidos a nível da ACP-UE e da Agenda 2063 da UA no domínio da educação e da formação de quadros.

União Europeia e ACP

A União Europeia é, talvez, a organização que mais contribui para cooperação internacional no domínio da educação e da formação de quadros tanto com África quanto com a América Latina e com o Pacífico, subscrita em Acordo de Parceira ACP-UE, cujo respectivo Acordo de Cotonou contém medidas relativas à promoção da educação, isto é, “(…) o desenvolvimento social e humano para melhorar os sistemas de saúde, de educação e nutrição” (Acordo de Cotonou, 2000. Fonte: https://eur-lex.europa.eu/PT/legal-content/summary/cotonou-agreement.html).

Com a reavaliação dos ODM em ODS, os Acordos de Cotonou, revistos sucessivamente em 2017, passaram a contemplar  “(…) a concretização dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável” (idem) que, como vimos, contempla no seu 4º Objectivo a educação e formação.

Contudo,  anterior aos Acordos de Cotonou vigoraram os de Yaoundé (1964-1975) e os de Lomé (1975-2000), os quais, além dos tradicionais sectores de cooperação no domínio comercial, da promoção do estado de direito e de investimentos, prevêem também a componente da educação e da formação de quadros.

O parágrafo 2 relativo à cooperação técnica geral, do art.17 da Convenção de Yaoundé de 1963 previa financiamentos de “(…) programas de gestão e de formação profissional” (Yaoundé, 1963. Fonte: https://www.cvce.eu/en/obj/the_yaounde_convention_20_july_1963-en-52d35693-845a-49ae-b6f9-ddbc48276546.html); o artigo 24 destinava fundos “(…) para para programas de formação de quadros e de formação profissional, bem como para estudos económicos, os governos dos Estados associados, institutos ou organismos especializados ou, excepcionalmente bolseiros e formandos” (idem). Algo semelhante lê-se no artigo 9, isto é:

“d) Concessão de bolsas de estudo para formação de quadros em universidades e institutos especializados nos Estados associados ou, na sua falta, nos Estados-Membros; e) Formação profissional através de bolsas de estudo ou estágios nos Estados associados ou, na sua falta, nos Estados-Membros; f) Organização de cursos de formação de curta duração para os nacionais dos Estados associados” (idem).

Tal verifica-se também nos de Lomé, com destaque para a posta na transferência de tecnologia para os Países da ACP. Ou seja, a alinha d) do art. 26 relativo à cooperação industrial propunha-se à

“Facilitar a transferência de tecnologia para os Estados ACP e promover a sua adaptação às suas condições e necessidades específicas, nomeadamente através do desenvolvimento das capacidades dos Estados ACP em matéria de investigação, adaptação tecnológica e formação industrial a todos os níveis nesses Estados” (Acordos de Lomé, 1975. Fonte: https://op.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/c973175b-9e22-4909-b109-b0ebf1c26328).

O financiamento destes acordos (Yaoundé, Lomé e Cotonou) insere-se no chamado FED (Fundo Europeu para Desenvolvimento) em curso desde a década de 1950 (1º FED), estando hoje ao 11º FED, que contém “(…) uma dotação de 30,5 mil milhões de euros e o Banco Europeu de Investimento irá disponibilizar uma dotação adicional de 2,6 mil milhões de euros sob a forma de empréstimos provenientes dos seus recursos próprios” (FED, 2020. Fonte:https://publications.europa.eu/resource/cellar/d020e2a3-bc08-47da-bae3-33ac345e8a73.0019.02/DOC_2).

No âmbito desta cooperação ACP-UE foi concebido o programa ERASMUS MUNDUS, que permitiu a formação em cursos de mestrado e pós-graduação de estudantes de Países ACP nas universidades europeias através concurso público internacional gerido pelas universidades europeias.

União Africana e Agenda 2063

Além dos compromissos dos seus Estados-membros para com a promoção da educação e formação dos quadros nacionais, inseridos nos seus programas e políticas nacionais dos respectivos governos, a União  Africana adoptou em 2015, por altura da comemoração dos 50 anos da criação da OUA/UA, a Agenda 2063 (África Que Queremos), isto é, a planificação geral das metas do continente africano para os próximos 50 anos, a coincidir com os 100 anos da organização continental.

Quais são as grandes linhas relativas à educação e formação de quadros que ela traz?

Na Inspiração 1: Uma África próspera, baseada no crescimento inclusivo e desenvolvimento sustentável, no parágrafo 11, lê-se que até 2063 o continente possuirá uma qualidade de vida melhor graças aos “(…) investimentos na ciência, tecnologia, pesquisa e inovação; igualdade de género, capacitação da juventude e prestação de serviços básicos como a saúde, a educação, abrigo, água e saneamento” (UA, Agenda 2063. Fonte: https://au.int/sites/default/files/documents/36204-doc-agenda2063_popular_version_po.pdf).

Na Inspiração 4: Uma África pacífica e segura, parágrafo 32, lê-se, dentre outros, que “Nas crianças e jovens africanos será inculcada a cultura de paz e tolerância através da educação para a paz” (idem). Neste caso, as Bienais para a Cultura da Paz em África, realizada por Angola desde 2019, que já vai na sua 3ª Edição (2019, 2021 e 2023), responde a este chamamento e visa contribuir para a materialização desta inspiração da África Que Queremos.

Na Inspiração 6: Uma África cujo desenvolvimento seja orientado para as pessoas, confiando no potencial dos jovens africanos, especialmente no potencial da mulher, da juventude e onde a criança tem tratamento digno, no seu parágrafo 56 constata-se que “O desemprego da juventude será eliminado e será garantido aos jovens de África o acesso pleno à educação, formação, competências e tecnologia (…) que lhes permitam concretizar o seu pleno potencial” (idem).

Equação cooperação para a educação e contenção dos efeitos alienadores do Soft Power cultural

A educação não é apenas factor de cooperação entre os Estados com vista ao desenvolvimento ou à paz internacionais. Ela é também um instrumento de materialização de Soft Power cultural e psico-emotivo e de influência deste Soft Power do Estado promotor junto dos Estadores receptores dos financiamentos ou de programas de formação destinados aos beneficiários dos Estados terceiros. Nalguns casos até é instrumental à fuga de cérebros (Brain Drain) de uma regiões para as outras, sendo a prática e os seus efeitos antigos e permanentes no tempo.

A utilização da educação como instrumento de Poder Brando de umas nações sobre as outras foi uma prática recorrente mesmo no período colonial. Em Cultos Especiais, Wanhenga Xitu, citado por Ana Lopes de Sá (2003), traz uma referência à Késsua, gerida pela missão metodista, em Malange. Segundo ele, “É do Késua que partem muitas caravanas de mensageiros à diversos destritos para espalhar e difundir a fé cristã, pelo método de cultos especiais” (p.42).

Todavia, há casos em que os ideais de educação baseados na lógica de endoutrinamento do Poder Brando não obtiveram os resultados esperados. Tal é o caso da Casa dos Estudantes do Império, criada na década de 1940 pelo poder colonial para formar estudantes e futuros funcionários do poder colonial nas províncias ultramarinas. Esses estudantes, entre eles, Agostinho Neto, Amilcar Cabral, Marcelino dos Santos, Lúcio Lara, contrariamente aos ideias colonialistas, tornaram-se nos Pais das Independências Africanas, através do lançamento das lutas anti-coloniais engendradas nos Movimentos Nacionalistas e Independentistas entre a década de 1950 e 1960, que culminaram nas independências da década de 1970.

A contenção dos efeitos alienadores  a nível cultural do Poder Brando na cooperação para a educação pode ler-se, igualmente, em prefácio da obra de Wanhenga Xitu, referindo-se a Agostinho Neto, isto é,

“Nós somos uma encruzilhada de civilizações, ambientes culturais, e não podemos fugir a isto de maneira nenhuma, mas da mesma forma que nós pretendemos manter a nossa personalidade polítca, também é preciso que nós mantenhamos a nossa personalidade cultural” (W. Xitu apud de Sá, p. 37).

Issau Agostinho

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