A guerra de prevalência de regimes e de percepção hegemónica entre Irão e Israel no Médio Oriente


Ambos Irão e Israel são inimigos irredutíveis no Médio Oriente, cujos governos de turno procuram maximizar a inimizade para sobreviver internamente e dominar o curso das relações na região onde se situam em benefício próprio. Ofereçamos uma chave de leitura e compreensão dos ataques directos lançados pelo Irão ao Israel: retaliação ou princípio de guerra total entre ambos e seus aliados?


A causa “aparente” e mediática dos ataques

O Consulado do Irão em Damasco, na Síria, sofreu um ataque selectivo que o destruiu complementamente no passado dia 1 de Abril de 2024, causando a morte de oficiais militares da Guarda Revolucionária Iraniana. Embora o ataque não tenha sido nem negado, nem confirmado por Israel, tanto o Irão quanto a opinião pública internacional atribuíram-no ao Israel que, não negando explicitamente a autoria do referido ataque avala a teoria do Irão e daquela opinião internacional. Contudo, ao nível prático, na ausência de provas e evidências imparciais e inconfundíveis que confirmem a responsabilidade de tais ataques ao Israel, a sua atribuição ao Israel pode ser movida por actos sensacionalistas e propagandistas, os quais podem ser funcionais inclusive aos interesses de Israel, que pode jogar a cartada de vítima de uma conspiração ou de ataques anti-semitas, levando-o a tomar medidas de retaliação adequadas para garantir a sua sobrevivência enquanto Estado naquela região.

Independentemente da confirmação, da negação ou da ausência de provas bastantes que clarifiquem os autores morais e materiais da destruição e morte no consulado iraniano, o Irão jurou vingar-se ou retaliar contra Israel e ontem lançou um ataque aéreo contra Israel, o primeiro ataque directo – salvo melhor opinião – do Irão ao Israel desde o advento da Revolução Iraniana e a criação da actual república islâmica em 1979, o que é algo bastante significativo nas relações internacionais e no Médio Oriente, pois, desde a Guerra de Yom Kippur de 1973 um Estado islâmico volta a atacar Israel, embora a dinâmica, o lietmotiv, o contexto e o autor sejam completamente diferentes dos de 1973, pois na época foi o Egipto de  Anwar al-Sadat a começar o que ficou conhecido como a 4ª guerra israelo-árabe (após as de 1948, 1956, 1967) para recuperar o Monte de Sinai ocupada por Israel na Guerra de 1967.

Na guerra de 1973, de facto, Israel esteve na condição de defensor/vítima de uma agressão externa. Graças a esse conflito, o Israel e Egipto assinaram um acordo de paz de 1979, que garantiram o retorno do Monte de Sinai ao Egipto e o restabelecimento de relações diplomáticas entre ambos os Estados, o que causou ao Egipto e Sadat críticas e vilipêndios do mundo arábe, que culminaram no seu assassinato em 1981. Dos mais acérrimos opositores de Sadat foi o líder líbio Muammar Gaddafi, que o próprio Nasser considerou como sendo o seu o herdeiro ideológico do pan-arabismo. Lembre-se que Nasser foi figura central da Guerra de Seis Dias, ou Guerra de 1967, que levara a perdas territoriais hoje na posse de Israel, incluindo o Monte de Sinai, recuperado apenas naquele ano de 1979.

Seja como for, trata-se de uma causa aparente e mediática – a dos ataques do Irão ao Israel -, na medida em que Israel não assumiu publicamente ter sido autor daqueles ataques, nem existem provas públicas que nos permitam a nós, enquanto estudiosos, averiguar com imparcialidade a autoria do ataque ao consulado e a consequente aplicação do artigo 51 da Carta da ONU, relativo ao princípio da auto-defesa. Do outro, questionar-se-ia se seria do interesse do Israel assumir a posse ou a beneficiar do princípio de cui bono do referido ataque ao consulado de iranino em Damasco.

Evocação do artigo 51 da Carta da ONU

As autoridades iranianas evocaram a observância do artigo 51 da Carta da ONU, relativo ao princípio da legítima defesa do Estado em caso de sofrer um ataque estrangeiro. Em poucas palavras, esse princípio consente ao Estado vítima de ataques ou agressão a sua auto-defesa individualmente ou através de uma aliança. Todavia, este artigo insere-se no capítulo VII da Carta, que elenca as funções do Conselho de Segurança. Isto é, não obstante o direito de auto-defesa do Estado agredido, o enunciado acautela o Estado a não extravasar os limites deste direito, não colocando em risco a paz e a segurança internacionais, tampouco as competências do Conselho de Segurança nesta matéria.

Assim, se por lado o comunicado do Irão segundo o qual os ataques lançados ao Israel teriam sido suficientes para retaliar o ataque sofrido ao seu consulado, que como se sabe, de acordo com a Convenção de Viena sobre as Relações Consulares de 1963 são uma extensão da soberania do Estado emissário no Estado receptor, por outro o referido Conselho de Segurança não discutiu e nem condenou em resolução o ataque ao consulado iraniano. Questionar-se-ia, igualmente, se o referido Conselho irá condenar em resolução o ataque a Israel, algo bastante remoto nesse momento histórico.

Um ataque de retaliação simbólica ou ponto de partida da guerra Irão-Israel?

Após o ataque de retaliação de Irão ao Israel o Primeiro-ministro israelita anunciou que seu governo estaria pronto para qualquer cenário ofensivo ou defensivo, e que tem estabelecido um princípio claro, isto é, que farão mal a quem causar mal a Israel. No comunicado de Irão, este teria concluído seu ataque de retaliação, mas advertiu que em caso de ataques ulteriores da parte de Israel a sua reacção seria mais severa.

Como se pode depreender do comunicado e do alcance dos ataques de Irão, este parece ter privilegiado um ataque mais de retaliação simbólica e cautelosa do que exasperada ou severa. Este ataque simbólico comunica internamente aos iranianos que o seu regime não deixará mais impunes os ataques híbridos, assimétricos ou convencionais que forem lançados contra o Irão, iranianos e interesses iranianos. Mas comunica também ao governo israelita para que cesse de efectuar tais ataques, pois a sua paciência estratégica deu lugar a impaciência para o confronto directo. Dito de outro modo, a bola está no meio-campo israelita, que disse estar pronto para qualquer cenário e a fazer mal a quem lhes fizer mal.

Além desta retórica belicista de parte a parte, enquanto ambos os regimes/governos não estabelecerem acordos de paz como os de 1979 entre o Egipto e Israel, o clima de guerra não-violenta ou de guerra violenta entre ambos será permanente, com riscos de incidentes causadores de conflito directo entre si.

Por outro, nesta altura quer a retórica belicista, quer o clima de conflitualidade entre ambos são funcionais aos interesses de perpetuação dos regimes, isto é, Israel ou Estado sionista, como o designa Irão, continuará a alimentar a ideologia do inimigo e da ameaça existencial do Irão, funcionando como factor de legitimação da acção de governo e da sua política externa securitária no Médio Oriente, mas ao mesmo tempo, um lietmotiv para a prossecução dos interesses de nação-gendarmi quase que herdeira póstuma do Nasserismo, que não obstante não seja arábe como a Líbia de Gaddafi, persegue uma espécie de Guerra religiosa-islâmica contra o Estado sionista, esperando que os demais Estados árabe-islâmicos do mundo compreendam a sua cruzada pela causa palestiana e do islamismo global.

Contudo, o Irão também é funcional à criação em Israel do mito da superioridade militar no Médio Oriente, graças aos ingentes contributos financeiros e militares dos EUA, e também da protecção do Estado de Israel contra inimigos que a querem destruir, chamando aos governos de ultra-direita ortodoxo-judaíca a missão histórica de defender Israel contra Estados ou inimigos como o Irão.

No contexto actual, de quase isolamento internacional do actual governo de Israel pela situação humanitária na Faixa de Gaza e de defesa de eleições antecipadas em Israel quer pelo establishment do Partido Democráticos dos EUA, quer pela sociedade e entourages políticas mais moderadas em Israel, o ataque de Irão poderá causar, quanto menos, o sentido de unidade interna e congelamento da sombra de eleições antecipadas e fim do governo de Netanyahu e eventualmente da sua carreira política. Face a isso, enquanto em Gaza o governo Netanyahu parecia tombar, em Teerão este governo poderá ressuscitar ou não, dependendo da disponibilidade dos principais aliados do Irão (Rússia) e do Israel (EUA) a um novo confronto directo ou indirecto numa nova zona geográfica que não é nem Ucrânia, nem Mar Negro.

Em suma, se a falta de fronteira terrestre e comum entre Irão e Israel poderá conter os efeitos de ataques e contra-ataques de retaliação convencional, ambos os Estados correm o risco de assistir a novos ataques terroristas, ataques híbridos e de guerra assimétrica nos seus respectivos territórios se os julgarem úteis à prevalência dos seus regimes e à percepção hegemónica no Médio Oriente, além de que certos ataques recíprocos entre nações servem para demonstrar o fim do mito de intocabilidade que é, por sua vez, o princípio da negação do mito da invencibilidade, que pode conduzir a Pax a ser imposta pelo vencedor desses mitos, que criará novos mitos até serem removidos pelo novo paradigma.

Issau Agostinho

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