Dossier

A controvérsia entre a China e os EUA sobre a origem do Coronavírus

Durante o mês de Março do ano corrente, com a redução de novos casos de contágio com o novo Coronavírus na China, o aumento exponencial na Europa e nos Estados Unidos, e o registo dos primeiros casos em África e na América Latina, instalou-se uma polémica entorno da origem do novo Coronavírus (declarado como pandemia Covid19 pela OMS), entre a China e os Estados Unidos.

Origem e designação de vírus
A Etiologia dos fenómenos quer médicos ou patogênicos, quer sociais ou politológicos, é correlacionada ao alcance ulterior das suas soluções ou mitigação dos efeitos provocados aos seres vivos gregários (humanos ou animais). No caso de uma pandemia, o estudo das causas (etiologia) do vírus pode consistir na isolação do genoma, o qual comporta os cromossomos de um dos seus genitores, e de consequência dar azo a produção de vacinas ou de outros princípios químicos capazes de contrastar os seus efeitos nos enfermos. No entanto, visto que no ramo da medicina a Etiologia é relativamente recente, houve no passado pandemias que foram inculpadas às punições divinas, ou que ficaram conhecidas na história com o nome do país que divulgou pubblicamente os primeiros casos de infectados, como é o caso de Influenza Espanhola.

Controvérsia sobre a origem do novo Coronavírus
Como se não bastasse a guerra comercial em curso entre ambos os países, a China e os EUA embarcaram em nova “guerra de conspiração” relativamente a origem/designação do novo Coronavírus, acusando-se mutuamente, ou insinuando, um ou outro de ser o “criador” deste patógeno.

Reagindo a audição de Robert Redfield, Director do Centro Estado-Unidense de Prevenção e Controlo de Doença (CDC), a um comité do Congresso, no passado dia 11 de Março, em que afirma que alguns casos de morte por influenza nos EUA foram identificados como casos de Covid-19 (sublinha-se que durante a audição, tal informação não foi exaustivamente aprofundida, pelo que qualquer conclusão apressada é cientificamente irrelevante), o porta-voz do Ministério Chinês de Negócios Estrangeiros, Lijian Zhao, questionou no seu twitter, entre outras, quando teria tido lugar o paciente zero do Covid19 nos Estados Unidos. Veja aqui.

Naturalmente, a Administração Trump, que designa o novo Coronavírus como “Vírus Chinês”, “Vírus do Wuhan”, para fazê-lo equivaler a Influenza Espanhola (como vimos, assim chamado por ser aí onde foram divulgados publicamente os primeiros casos em 1918), desmintiu tal pretensão de Lijian Zhao. Segundo Trump, trataria-se de “Vírus Chinês” por ter começado na China. Esta por sua vez afirma terem sido os militares estado-unidenses que o teriam levado durante 7th World Military Games (7º Jogos Militares do Mundo), que tiveram lugar na província de Hubei, de cuja capital é a cidade de Wuhan, em Outubro de 2019.

As acusações são, porém, distintas em termos veículo transmissor/lugar originário: isto é, enquanto a China evoca a hipótese de terem sido os militares estado-unideses (veículo transmissor), a Administração Trump fá-lo acusando a China (lugar originário), sem especificar o veículo transmissor. Seja como for, não se sabe se as afirmações de Zhao engajam ou não o governo chinês, enquanto que pela parte estado-unidense, elas vêm directamente do titular do seu governo. Será que um dia o presidente Xi Jinping negará ou validará tais afirmações, a par do seu homólogo estado-unidense?

Não obstante tais acusações recíprocas, e salvo provas contrárias materialmente verificáveis e independentemente manipuláveis, as duas partes não poderão ser credíveis.

Acusações recíprocas comuns em RI
Todavia, se ao nível das Ciências Médicas, a Etiologia esclarece a origem do patógeno, em Relações Internacionais (RI), ignorando a etiologia médica já pré-estabelecida, os seus principais sujeitos, por vezes, embarcam em polémica diplomática relativa à eventual “paternidade laboratorial” do vírus, por meras razões de responsabilização moral do acusado perante um terceiro Estado, ou perante todo o Sistema Internacional, de modo que o acusador possa obter ou reforçar a sua liderança e virtudes face aos demais sujeitos do sistema, em prejuízo do acusado. Não sendo uma disciplina de Ciências Exactas, as Relações Internacionais e o realismo das políticas externas dos Estados fazem que, perante um inimigo invísivel, este se transforme num bode expiatório para avançar os seus interesses objectivos em termos económicos e comerciais, ou em termos militares e assertivos, além de interesses subjectivos ao nível da moralidade e da diplomacia públicas.

Estados têm capacidades manipulatórios de vírus
As acusacões que os Estados partilham entre si têm a sua razão de ser fundada na desconfiança perpétua dos seus intentos, mas também nas capacidades técnicas e científicas que alguns desses países possuem. Trata-se, por exemplo, dos BSL-4, isto é, Bio-Safety Laboratory Level-4 (Laboratório de Biossegurança de Nível 4).

Segundo Carla Nisii et al., “O laboratório BSL-4 é o ambiente convencional, onde patógenos podem ser estudados em condições de alta segurança, estrutura técnica de ponta desenhada e construída em compliance com os mais altos níveis de segurança, ao qual apenas o pessoal treinado e em contínua formação pode ter acesso” (Nisii, The European network of Biosafety-Level-4 laboratories: enhancing European preparedness for new health threat, in Clinical Microbiology and Infection, Vol. 15, nº 8, August 2009, p.721).

Há dez anos, àquela especialista elencava a existência de 7 laboratórios BSL-4 internacionalmente reconhecidos só no continente europeu, e em 5 países, nomeadamente, no Reino Unido, Itália, França, Alemanha e na Suécia.

Segundo o relatório do encontro de especialistas de BSL-4, organizado em Lyon, em 2017, o mundo já contava com 50 laboratórios BSL-4, capazes de manipular/estudar os mais perigosos patógenos para a saúde humana e aninal, concentrados maioritariamente na América do Norte, Europa Ocidental, destacando alguns em construção na China, Japão e África Sub-Sahariana. (Cfr. Report of the WHO Consultative Meeting on High/Maximum Containment (Biosafety Level 4) Laboratories Networking, Lyon, France, 13–15 December 2017. Geneva: World Health Organization; 2018 (WHO/WHE/CPI/2018.40). Licence: CC BY-NC-SA 3.0 IGO). Neste relatório é presente o elenco dos principais Centros de Estudo, Controlo e Prevenção das Doenças, bem como os BSL-4 do mundo.

A comunidade científica confirma evolução natural do novo Coronavírus
A comunidade científica descarta qualquer possibilidade que o novo Coronavírus tenha sido fabricado laboratorialmente, o que tranquiliza de um lado a comunidade internacional, mas de outro lado, mostra uma clara tentativa de politização e instrumentalização desta pandemia pelas duas nações, já em guerra comercial entre si. Num artigo publicado na revista Nature Medicine, Andersen et al., graças ao estudo comparativo dos genomas dos anteriores SARS, afirma que “Our analyses clearly show that SARS-CoV-2 is not a laboratory construct or a purposefully manipulated virus”,isto é, que “ a nossa análise mostra claramente que SARS-Cov-2 não foi construído laboratorialmente ou um vírus manipulado propositadamente” (cfr. Andersen K.G., Rambaut, A., Lipkin, W.I. et al. The proximal origin of SARS-CoV-2. Nat Med (2020). https://doi.org/10.1038/s41591-020-0820-9).

Em suma, apesar das especulações dos leigos, e as acusações verificadas entre a China e os EUA, os estudos de há poucas semanas já mostraram que o novo Coronavírus não foi criado em laboratório ou manipulado propositadamente.

Apesar disso, não se pode negar que vários países possuem capacidades técnicas e científicas de manipulação propositada de vírus, graças aos seus laboratórios de tipo BSL-4, que podem ser engajados para fins civis e de pesquisa médica ou para fins militares, por via de guerra virológica, biológica ou química. Em tal caso, e etiologia poderá identificar o veículo transmissor, sem nunca poder indicar a paternidade ou lugar originário, dada a difusão de tais capacidades no Sistema Internacional, mormente entre países mais potentes.