Vezes sem conta assiste-se a perpetuar-se de acusações de fraudes eleitorais, limites a pluralidade de opiniões dissonantes e a politização da justiça em regimes partidocráticos (ler aqui a alternância política em regimes democráticos e partidocráticos) na maioria dos Estados africanos. Porém, como é que a ausência da democracia prejudica o interesse nacional e fragiliza a soberania dos Estados africanos?
A democracia e o “Contrato Social”
É sobejamente conhecido que a democracia é o regime do poder assente na vontade popular, que através de “Contrato Social” atribui a legitimidade e a legalidade representativas a um governo, geralmente, por meio de eleições directas ou indirectas, a depender do tipo de forma de governo.
Isto é, em regimes parlamentares o Primeiro-ministro é nomeado pelo Parlamento através da fórmula de partidos maioritários, a quem o demos (povo) elege directamente. O mesmo acontece também em regimes semi-presidenciais, como o francês e o angolano, que vigorou entre 1992 e 2010. Nestas formas de governos semi-presidenciais existe, inclusive, a possibilidade de “coabitação política bicéfala” entre um Presidente da República de um partido político, e um Primeiro-ministro de um outro ou de outros partidos políticos.
Nesta altura, em França pós-eleições legislativas antecipadas de finais de Junho (1ª volta) e primeira semana de Julho (2ª volta), há possibilidade de formação de maioria na Assembleia Francesa formada pela coligação de partidos de esquerda reunidos em NFP (Nova Frente Popular) e o partido do presidente em exercício. Se acontecer, se materializará uma nova coabitação na história daquele País, depois da que se registou na presidência de Miterrand (de esquerda) com os Primeiro-ministros Chirac e Balladur (de direita), entre 1986 e 1995, e a outra na presidência de Chirac e o Primeiro-ministro Jospin (de esquerda), entre 1997 e 2002.
Como se vê, a democracia não se limita só ao voto popular, directo ou indirecto. Depende também das tipologias de governos e das fórmulas de legitimação do poder na relação directa ou indirecta entre o povo soberano e o seu representante na sociedade e no Estado.
O voto sem democracia como fonte da SLA
Nas chamadas “democracias iliberais”, como as caracterizou Fareed Zacaria em finais da década de 1990, realizam-se eleições. Todavia, essas eleições podem ser entendidas como «voto sem democracia». Um voto sem democracia acontece quando o voto maioritário dos cidadãos em regimes partidocráticos não reflecte nem a verdade eleitoral, nem tampouco a alternância política. Nestes casos, o regime partidocrático orquestra para si o resultado favorável do voto (fraude eleitoral), através da utilização de estrategemas de intimidação autoritária e chantagem económica aos eleitores, a criação de partidos políticos terceiros para a “dispersão” de votos, ou ainda o silenciamento mediático dos principais opositores, os quais, vendo-se diante do «facto consumado» cedem ao número de mandatos parlamentares que a elite partidocrática africana decide de lhes atribuir aleatoriamente. Como se nota, em caso de actuação dessas estrategemas, o governo saído dessas eleições sofre do que podemos chamar de «Síndrome da Legitimidade Amputada, SLA», que consiste na auto-consciência política da falta de legitimidade popular interna para governar, bem como a ausência do sentido de responsabilização política perante o povo, e somente o povo, quer directamente, quer indirectamente, através dos seus representantes parlamentares.
A legitimidade do governo em partidocracia e riscos vulnerabilidades no sistema internacional
Um dos fenómenos menos explorados em África, e quando o é, limita-se a um mero coro de condenação baseada unicamente em princípios da alternância política por meio do voto, e não no mérito desses eventos, são os golpes de Estados, que, como já vimos (ver a qui a distinção entre golpes de Estados e revoluções) nem todos são iguais. Mais do que condenar e que ao fim e ao cabo não muda o status quo ante, seria de todo oportuno e necessário abordar a correlação de causas e efeitos entre a SLA e a ocorrência desses golpes de Estados, sobretudo, quando esses assumem a valência de verdaderias revoluções populares contra a usurpação do poder pelos regimes partidocráticos anteriormente no poder na maioria de Estados em África.
Contudo, lançando um olhar comparativo aos ditos regimes democráticos consolidados nota-se a correlação entre a democracia e o interesse nacional, bem como o vigor da preservação das suas soberanias nacionais. Isto é, mais democrática é uma sociedade, menos é suscptível a vulnerabilidades externas que perigam a persecução do seu interesse nacional e a manutenção da sua soberania. Baseando-se unicamente na legitimidade interna, derivante do voto popular, as democracias consolidadas não sofrem do SLA.
Do outro lado, os governos africanos não resultantes do voto democrático e sofrendo da SLA, não tem têm força, muitas vezes, nem a vontade, de perseguirem unica e genuinamente o interesse nacional. Aliás, visto que para sobreviver a sua elite aposta na legitimidade internacional, esses governos submetem-se aos diktats externos e aos compromissos clientelares internacionais junto dos Estados dos quais procuram essa legitimidade. Curiosamente, é isto que pode justificar e explicar a procura pelo reconhecimento internacional no imediato da divulgação dos resultados eleitorais, pois sem ele os regimes partidocráticos sentem-se inseguros e ilegítimos não só perante o povo, mas também perante o sistema internacional e das suas organizações.
Em poucas palavras, existe uma relação directa de causas e efeitos entre a democracia verdadeiramente tal e a materialização do interesse nacional, do prestígio do Estado, do seu povo e da sua classe dirigente no contexto internacional (não apenas africano) e o desenvolvimento nacional.
A procura pela legimitidade internacional, além de causar a SLA, submete o Estado africano e a sua classe dirigente a constantes pressões, chantagens e diktats internacionais que, em última análise, prejudicam o interesse nacional, pois os partidocráticos, para se manterem no poder, são propensos a alienação do interesse nacional mais do que o fariam os líderes legitimados pelo povo, que funcionam, inclusive, como escudo para sobrevivência do Estado moderno, pois quando o povo é consciente de ter governo legítimo resultante da sua legitimidade democrática tende, inclusive, a defendê-lo em casos de chantagens ou de incursões internacionais. Quando é o contrário, o mesmo povo pode ser até instrumento de pressão externa para fragilizar o governo anti-democrático.
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