África e o mundo multipolar. Actor ou participante?

O realismo geopolítico internacional assinala que a guerra na Ucrânia marca o início do novo século nas relações internacionais, caracterizado pelo advento do mundo multipolar, já antecedido por outros eventos desafiadores da ordem unipolar vigente desde o fim da Guerra Fria. Nessa ordem multipolar em afirmação, África (no estágio actual) será actor ou participante?


Leitura dos fenómenos internacionais na óptica da narrativa dos protagonistas

Salvo excepções, a compreensão africana de fenómenos internacionais, é quando estes têm lugar no Ocidente ou no Oriente, envolvendo actos de política externa dos EUA, da União Europeia, do Reino Unido, da China, Rússia, e outros. Naturalmente, isso pode ser assim devido ao facto que são esses sujeitos do Direito Internacional Público, cujos actos de política externa, de segurança e de cooperação produzem impacto constante e permanente no sistema de Estados, com efeitos positivos ou perversos a nível de terceiros Estados. Tal é o caso da guerra na Ucrânia, que pode ter derivado de uma política externa de defesa e segurança da Rússia (enquanto agressor) e da OTAN (enquanto aliança militar, cuja hipotética e/ou provável expansão aí, e a falta de acordo de equilibrio de força entre esta e a Rússia, pode ter precipitado a guerra em curso). Ou ainda a intervenção da OTAN em conjunto com outros Estados não-membros dessa aliança na Líbia, em 2011, que resultou no derrube do regime de Khadafi e na instabilidade político-social e na quase transformação em Estado falido. Ambas são provas de efeitos negativos de políticas externas dos seus protagonistas naqueles territórios nacionais e soberanos.

Daqui, a leitura (mediática ou empírica) de tais fenómenos acontece, regra geral, muito mais na óptica da narrativa dos protagonistas dessas políticas externas (legítimo enquanto estudo da história das ideias políticas e dos Homens de Estado) e muito menos na de compreensão autónoma dos referidos fenómenos e seus efeitos perversos ou positivos (indispensável enquanto estudo estratégico de caso). Isto é, em relação a guerra em curso na Ucrânia, a classe académica especializada em questões de geopolítica e de relações internacionais tende a fazer a leitura geral desse acontecimento repropondo, em termos próprios, uma análise independente da dos protagonistas, sem, contudo, trazer um enquadramento epistemológico (o que se sabe) e metodológico (como se sabe) ao contexto africano e dessumir, daí, eventuais repercussões ontológicas (o que será) a nível continental, regional ou sub-regional, a curto, médio ou longo prazo.

Esta hipotética predisposição a analisar tais fenómenos «internacionalizados» mais na óptica da narrativa dos protagonistas acima descritos (normal se visto o seu predomínio no sistema de Estados hodierno), de um lado, pode reflectir o seu predomínio enquanto modelo de referência ideológico, mediático ou do softpower cultural e do charme diplomático nas narrações construídas localmente, de outro lado, a ausência ou a fraqueza de uma psicologia de massa capaz de olhar a fenómenos externos na óptica Pan-africana e dos interesses africanos.

Ordem multipolar em curso

Em várias ocasiões, quer a nível multilateral, quer bilateral, foi discutido e recomendado o desenho de uma ordem mundial que fosse équa e justamente representada por todos os Estados e blocos regionais, considerando que o institucionalismo liberal internacional, criado ou consolidado desde a década de 1940 , é essencialmente Euro-Atlântico-Cêntrico, quer em termos de filosofia política e económica (liberalismo e liberismo), quer em termos do alcance cultural, religioso e racial (ocidental, cristão, e caucasiano). Aliás, foram os governos europeus e estado-unidense que impuseram sanções económicas à Russia enquanto agressor da soberania ucraniana, reflexo que são eles que prevalecem no sistema fincanceiro internacional, através do Consenso de Washington e dos diktats de Bruxelas, o que é legítimo dado o contexto em que surgiu a ordem pós-bélica.

Uma dessas recomendações veio através da Resolução A/RES/55/48, de 29 de Novembro de 2000, da Assembleia Geral das Nações Unidas, que apelou a promoção de uma «Nova Ordem Global Humana», a implementar sob a égide das Nações Unidas, de todos os Estados-membros e dos actores do multilateral governance (sectores privados, ONGs, e autarquias). Sublinha-se o papel central que se esperava que a ONU desempenhasse no novo século!

A nível do continente africano, além da Declaração de Monróvia de 1979 ter recomendado a instauração de uma nova ordem económica africana, assente na integração de mercados económicos como alavanca do desenvolvimento sustentável e premissa da integração política (considerando que nesse período vigorava a Agenda do Grupo da Monróvia, contrária à visão do Grupo de Casablanca, que defendia a integração política de África a priori e a económica a posteriori), há, igualmente o chamado «Consenso de Azwelini», aprovado pelo Conselho Executivo da UA, a 8 de Março de 2005, em que África, de um lado, recomenda uma maior inclusão de quadros africanos nos organismos internacionais e multilaterais, e de outro, reivindica dois lugares como membro permante do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a serem escolhidos pela UA. Enquanto a declaração de 1979 propõe a re-organização económica interna, o consenso representa as aspirações de África para uma ordem internacional justa, que passasse do predomínio unipolar, para uma dimensão multipolar, onde os Estados gozassem das mesmas prerrogativas soberanas garantidas pelo parágrafo 1, do artigo 2º da Carta das Nações Unidas, da paz, da prosperidade e da justiça internacionais, típicas do idealismo e do optimismo internacionais.

África, actor ou participante

Embora a variável do passado socialista possa ser relevante, as abstenções ou os votos contrários de mais da metade de países africanos nas duas últimas resoluções da ONU relativas a agressão da Rússia contra a Ucrânia e a sua suspensão do Conselho dos Direitos Humanos podem ser entendidos como “apoio indirecto” a instauração de equilibrio de força europeu, com efeitos positivos em termos de segurança internacional (considerando sua relevância no sistema de Estados). Porém, de forma directa, as abstenções, votos contrários ou não voto podem, igualmente, ser entendidos como condenação da agressão contra a Ucrânia, independentemente se o seu eventual ingresso na OTAN viesse a minar a paz e segurança regionais europeus com efeitos devastantes para a África. Quer num caso, quer noutro, África apresenta-se como actor numa matéria (de paz e segurança) que lhe diz respeito enquanto membro da sociedade internacional de Estados.

Ela é igualmente actor, na medida em que reivindica, desde há decadas, a reforma do institucionalismo liberal, a integração de quadros africanos nos organismos internacionais e multilaterais, e a atribuição de dois lugares permanentes no Conselho de Segurança.

Contudo, esta posição de actor é meramente formal, pois, ela continua a não ter representação factual naquele órgão de paz e segurança, não participando, por isso, nas decisões (quando as houver) que determinam o curso de paz e segurança internacionais; continua a ter um peso ínfimo na economia mundial, pois, as aspirações do Grupo de Monróvia não trouxeram o desenvolvimento económico esperado, produzindo, pelo contrário, uma sobreposição de Comunidades Económicas Regionais (CER) e a múltipla afiliação dos Estados africanos em distintas CER (a RDC foi agora admitida como membro da Comunidade da África Oriental, que se soma a sua pre-existente afiliação à CEEAC e à SADC); não possui um comando de defesa único, como proposto por Kwame Nkrumah no seu discurso da criação da OUA, em 1963, cuja African Standby Force (Força de Alerta Africana) continua em papel há mais de 10 anos, não havindo, por isso, a possibilidade de auto-defesa em caso de agressão militar da parte de uma aliança ou um terceiro Estado; enfim, a desunião política do continente, a falta de uma política externa comum e a descoordenação do seu poder económico, do softpower antropológico, cultural e ancestral, e das suas mundividências emancipadoras fazem de África um não-actor do mundo multipolar em afirmação a par da União Europeia (que embora não havendo política externa comum, não sendo um Estado federal, possui unidade económica, cultural e social entre os seus membros, que a tornam relevante no contexto internacional), pois, só unindo todos os 55 Estados numa única entidade intergovernamental, confederal ou federal, poderá ela ser um actor indispensável na cena internacional, e sair do plano meramente formal.

Por conseguinte, excepto esta dimensão, na instauração de uma ordem multipolar o continente africano desempenharia, no estágio actual, o papel de mero participante e não de actor. Se quiser, agiria como actor-participante, e não como actor-competitivo e co-decisor desta ordem. Paradoxalmente, esta condição pode ajudar a perceber, mais ainda, a compreensão dos fenómenos relevantes a nível das relações internacionais na óptica da narrativa dos protagonistas, sem enquadrá-los na óptica Pan-africana, já que esta parece não possuir o vigor que lhe era característico no fervor das lutas pelas independências africanas, enquanto as lideranças actuais preferem maximizar as suas soberanias nacionais em detrimento de uma soberania conjunta como fazem outros povos.

Dott. Issau Agostinho

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