Angola. Dual-party system, preferência racial e democracia de tipo endógeno no pós-eleição de 2022


Com 97,3% dos votos escrutinados pela CNE, em data de 25 de Agosto de 2022, um dia após às eleições gerais, o MPLA projecta-se como vencedor com 51,7% de votos validamente expressos, ao passo que a UNITA estima-se como o segundo mais votado com 44,5%. Salvo mudanças inesperadas, os resultados definitivos e oficiais, a serem divulgados até ao dia 9 de Setembro, confirmarão a victória eleitoral do partido dos camaradas. Como caracterizar o sistema de partido e que perspectivas políticas futuras se depreendem do voto do passado dia 24?


Cimenta-se o regime bipartidário (dual-party system) em Angola

Contrariarmente a natureza tripartida (FNLA, MPLA e UNITA) que caracterizou o período de luta armada contra o colonialismo português entre os anos 50 e 70, em que as ideologias dominantes eram o nacionalismo e independentismo (ou nacionalismo independentista), a parcial transição política pós-acordos de Bicesse de 1991 – que traria o fim do regime monolítico do MPLA para o multipartidário, plural e inclusivo – conduziu, pelo contrário, a transformação do regime do partido único em regime de partido dominante, que se manteve desde 1992 até 2008. Para Chege (2007), in Political Parties in East Africa: Diversity in Political Party Systems, em sistemas de partidos dominantes, ou one-dominant-party system, “os partidos políticos da oposição, apesar de terem a liberdade de acção dada pelo governo, tendem a ser pequenos, fragmentados e, em última análise, ineficazes para fornecer uma alternativa credível ao partido principal em termos ideológicos e políticos” (p.30).

Esse foi o caso de partidos e coligação de partidos políticos nascidos em 1992 (PRS, PLD, PRD, PSD ou AD-Coligação) ou os disseminados entre 1992 e 2008 (FpD, PDP-ANA, PPE, PAJOCA, FOFAC, ND ou PADEPA) (Fonte: CNE), os quais não representaram alternativa «ideológica e política» ao partido dominante, o MPLA.

À medida que se reduziu a fragmentação partidária nos ciclos eleitorais de 2012, 2017 e 2022 (dentre os partidos acima apenas o PRS mantém-se constante, passando da quinta força mais votada em 1992, para a terceira em 2008, baixando para a quarta em 2012 e 2017), bem como se extinguiram numerosos partidos políticos do período posterior a 1992, cimenta-se, cada vez mais, o regime bi-partidário em Angola, graças, em parte, a preferência que a UNITA vai obtendo no seio da camada de eleitores mais jovens e urbanos nas principais praças eleitorais do país (Conferir a estratificação do voto aqui), desiludidos com políticas públicas de um MPLA assorbido pela modalidade de damage control, que se auto-impôs para a dirimir danos económicos e sociais provocados pela corrupção galopante, que benificiou a sua entourage e familiares entre 2004 e 2017.

Em regimes bi-partidários ou dual-party system, cada uma das forças políticas principais tem uma “perspectiva igual de ganhar o poder do governo” (Salih, 2007:46, in Political Parties in Africa: Challenges for Sustained Multiparty Democracy), e foi precisamente esta consolidação do sistema partidário dual entre o MPLA e a UNITA que tornou a disputa eleitoral do dia 24 de Agosto de 2022 bastante competitiva e de êxito imprevisível, em que tanto um como outro possuía margens de victórias semelhantes. Aliás, a contagem paralela de votos pela UNITA mostrariam-no em vantagem sobre o MPLA, com base em cerca de 41% de assembleias escrutinadas por si (ver o link aqui).

Embora a minha análise se baseie em dados oficiais da CNE, que selam a victória eleitoral do MPLA, a UNITA, como em ocasiões anteriores, interporá, quase seguramente, um pedido de impugnação do êxito eleitoral ao Tribunal Constitucional que, a sua volta, com base na sua doutrina jurisprudencial de casos semelhantes do passado, validará, em ultima ratio, o exposto pela CNE.

A métrica social e “racial” do voto angolano precisa-se

Angola possui um tabu colectivo, uma alergia quase mórbida quando se trata de discutir as relações sociais baseadas em “raça”, nacionalidades e formas de racismo, como a que o estudioso angolano, Domingos da Cruz, designa por “neorracismo”. Para si, “o neorracismo no contexto de Angola pode ser colocado num horizonte temporal que começa em 2002. Com a conquista da paz (…), o país atraiu muitos estrangeiros originários um pouco por todos os cantos do mundo. Entre os estrangeiros brancos, não poucas vezes tiveram atitudes criminosas de racismo contra os negros angolanos ou de outras nacionalidades africanas residentes em Angola. (…) regressados à Angola na condição de trabalhadores ou não, e com o mesmo orgulho racista de quem andavam revestidos os seus avós, bisávos e tetrávos, voltaram a disparar o ódio rácico porque temos fenótipos diferentes (Da Cruz, 2019: 18, in Racismo. O machado afiado em Angola).

Não se trata de evocar as agruras do nosso passado distante, em que FNLA e MPLA gladiavam-se nos primórdios da luta de liberação nacional pela verdadeira legitimidade e representatividade do povo angolano junto de si e da OUA, com o primeiro a acusar o segundo de ser um partido dos mestiços, facto dissipado com a chega de Agostinho Neto à sua presidência em 1962, o qual reintegrou oportunamente no seu Comité Director os não-negros suspensos anos anteriores em reacção às acusações de FNLA (Pinto, J.P.Henrique, 2016: p. 145, in A questão identitária na crise do MPLA (1962-1964). Trata-se apenas de reconhecer e recomendar uma característica importante de uma democracia de tipo liberal ou multipartidária: a incidência de vários factores tangíveis e intangíveis na formação da preferência do eleitor e a sua manifestação em voto numa eleição política, que Angola passou a assumir desde 1992, altura em que renunciou o modelo precedente da democracia popular, em que a preferência era geralmente centralizada e determinada a partir da super-estrutura, sobretudo no caso de eleição/nomeação das Assembleias Populares vigentes no tempo do partido único.

Esta métrica do voto social e “racial” permitiria a sociedade angolana e os partidos políticos traçar o perfil do eleitor em todas as suas dimensões (classe, identidade, ideologia e “raça”), bem como endereçar melhor as suas campanhas eleitorais e adaptá-las aos perfis previamente conhecidos. Vejamos o seguinte cenário relativamente ao voto das minorias: imaginemos que na eleição ora terminada o partido A tenha obtido 10% dos votos de mestiços e caucasianos angolanos e o partido B tenha obtido 90%, então, o partido B se empenharia a fim de obter daquela categoria social uma maior percentagem na eleição de 2027 da que obteve em 2022.

Um primeiro sinal sobre o amadurecimento da sociedade angolana em lidar com este factor métrico, foi lançado no seio do próprio MPLA sob o impulso do presidente João Lourenço, quando no seu VI Congresso Extraordinário de 2018 reconheceu e passou a integrar no quadro de honra as figuras de Ilídio Machado e Mário Pinto de Andrade como 1º e 2º presidentes do partido (Ver o Jornal de Angola aqui). Já o actual presidente da UNITA, Adalberto da Costa Junior, afirmou num dos comícios realizados durante a campanha eleitoral do seu partido na região Lunda não existir um só povo e uma só nação (lema histórico do MPLA) em Angola, mas sim vários povos e várias nações, que traduzido em lema seria et pluribus unum, ou seja, unidade na diversidade. Aliás, esta figura viu anulado pelo Tribunal Constitucional em Outubro de 2021 o VIII Congresso Ordinário da UNITA, realizado em Novembro de 2019, durante o qual tivera sido eleito como 3º presidente da UNITA, por possuir à data daquele acto uma segunda nacionalidade, a portuguesa. A repetição do Congresso e sua reeleição à cabeça do mesmo partido, em Dezembro de 2021, tornou-lhe no primeiro presidente mestiço daquele partido e primeiro canditado mestiço à presidência de Angola desde 1992, quando Anália de Victória Pereira, angolana e caucasiana, fora candidata àquelas primeiras eleições pelo partido PLD, que presidira.

Portanto, a partir da eleição ora terminada, os sociólogos, etnólogos e politólogos e oturos cientistas sociais precisam começar a ter como objecto de estudo a variável racial na disputa politica em Angola, considerando que o presidente da UNITA não será o último candidato angolano e mestiço a concorrer ao poder político, pois nas próximas décadas haverá muito mais candidatos mestiços e luso-angolanos a disputar, também, o poder político em Angola, inclusive no seio do MPLA, tradicionalmente mais inclusivo a nível racial do que a UNITA. Dentre as questões de investigação se recomendariam :

  1. Numa sociedade onde o «escuro not» é uma tendência, a miscegenação é constante quer entre familiares de proa do MPLA, quer entre meros cidadãos comuns, e onde parte da elite é aculturada e multinacional, o que significará ser angolano?
  2. Que relação haverá entre a “raça” e o poder?
  3. Assistiremos a passagem de uma luta baseada em classe/ideias políticas para uma baseada em “raça”?
  4. Que efeitos terá a falta da desconolização das mentes na estrutura de poder em Angola nas próximas décadas?

A democracia é a síntese da realidade endógena de cada povo

Geralmente, concebo a democracia como a súmula e a soma de traços históricos, sociológicos e filosóficos de um povo, da sua relação cívica e de inter-dependência testada e consolidada no tempo. É assim que a democracia da Cidade-Estado de Atenas do século IV a.C. não é a mesma que a do reino do Congo do século XV. A propósito, o historiador angolano, Patrício Batsikama, (Lumbu: a democracia no reino do Congo, 2014) afirma, por exemplo, ter havido já a democracia no reino do Congo, reino Lunda-Tchokwe, e da Matamba/Ndongo antes mesmo da chegada dos exploradores portugueses naqueles territórios, o que prediz que ela tenha sido distinta em suas formas endógenas da democracia de Atenas que, por sua vez, não era a única ao seu tempo, pois Leonardo Marchettoni (2018) in Breve storia della democrazia afirma que “Atenas não foi certamente a única polis organizada democraticamente mas, em virtude do seu prestígio, é aquela cuja organização melhor conhecemos” (p.6).

Logo, questionar-se-ia, na sua concepção hodierna, se a democracia é um fim ou é um meio?

Em quase todas as sociedades contemporâneas, ela sempre se manifestou como meio: é meio do poder, mas é fim da vontade geral, que nem sempre coincide com a vontade do poder. A isto Piergiorgio Odifreddi (2018) in La democrazia non esiste. Critica matematica della ragione politica, distingue duas formas interpretativas de democracia: a). “na intrepretação canónica, o povo é  o sujeito que governa”, b). “na interpretação apócrifa, o povo torna-se objecto de governação” (p.12). A estas duas formas equivalem o meio, quando o povo é objecto de governo, e o fim, quando o povo é o sujeito do governo, isto é, quando ele é o centro de toda a acção governativa, quando a soberania plena reside em si, quando os seus actos democráticos são decididos e consumados internamente, sem apelos a intervenção internacional, pois violam o seu princípio da soberania.

Dito isto, é um paradoxo quando, cada vez que um líder da oposição perde eleição em África clama pela intervenção da comunidade internacional, o que alimenta a ideia das “democracias tuteladas” em África ou da “democracia universal”, o que desonra a dignidade dos africanos face ao mundo e desconhece a peculiaridade dos processos democráticos de cada sociedade quer em África, quer no resto do mundo. Ora, questionar-se-ia a que tipo de democracia clamam a intervenção internacional: a atenense? a democracia “canónica” ou “apócrifa”? Certamente, não têm em mente a democracia do Congo ou da Lunda quando o fazem, pois, como diz Marchettoni (2018) acredita-se ainda ser a democracia de Atenas (que não existe há milénios) o modelo de democracia a seguir. E é justamente baseando-se na ideia de que nenhuma  democracia existente neste mundo veio da comunidade internacional, que o historiador angolano clama em  “começar a pensar nos pilares sócio-culturais que se devem fundar na nossa democracia” (Batsikama, 2014 citado pela UEA).

Em suma, a consolidação do sistema bi-partidário, o maior envolvimento de minorias raciais e a necessidade do aprofudamento do processo democrático a partir dos traços culturais, das vontades populares e do reforço da credibilidade e eficácia das instituições republicanas angolanas serão os principais identikits e desafios dos seus principais actores políticos e das regras de jogo que se atribuirão, sem prejudicar a unidade na deversidade e a soberania nacional, essenciais ao desenvolvimento sustentável e inclusivo de Angola.

Issau Agostinho

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