João Lourenço, o reformador a “Deng Xiaoping” que joga como Kasparov

No estudo da História das Ideias Políticas, como matéria subjacente às Ciências Políticas, os cientistas políticos e outros especialistas do ramo ocupam-se de trazer à liça de análises as visões, incursões e ideologias que marcaram a época em estudo, bem como os seus actores e o impacto que tiveram na transformação das sociedades. Ora, o que “acomuna” o actual presidente angolano, João Lourenço, ao ex-líder chinês, Deng Xiaoping, e ao ex-campeão mundial de xadrez, o também croata Garry Kasparov?


   Em primeiro lugar, se do lema apresentado para a eleição geral de 2017, designado por “Corrigir o que está mal, e melhorar o que está bem” depreende-se uma alusão ao perfeccionismo ético próprio da administração pública, que pretende melhorar o seu modus operandi para a satisfação das necessidades e ansiedades dos utentes, do outro, foi durante a visita privada à Espanha, no calor das eleições do ano passado, que o então candidato João Lourenço deu ao lema uma conotação transformadora, semelhante a epopeia de Deng Xiaoping, na China.

   Isto é, durante uma entrevista à agência espanhola EFE, em Agosto de 2017, no exacto momento em que, em Luanda, os partidos políticos na oposição tinham os nervos à flor da pele e se precipitavam para apresentar um recurso ao Tribunal Constitucional contra eventuais irregularidades na contagem dos votos nas demais assembleias de votos no país, João Lourenço, que ali se apresentara já como presidente-eleito, respondeu à uma das questões que lhe fora colocado sobre se seria um reformador angolano, ao que respondera, sim, e que não preferiria ser comparado a Gorbachev, mas sim a Deng  Xiaoping.

   Xiaoping, de facto, mera coincidência ou não, teve um percurso político dentro do Partido Comunista Chinês (PCC) semelhante ao do João Lourenço no MPLA. O primeiro foi secretário-geral do PCC nos anos 50,  enquanto que o segundo foi-o pelo MPLA entre 1998-2003.

   Contrariamente a Mao Zedong, que preferia uma política económica anti-capitalista, baseada na produção colectiva das massas camponesas, lançada com o falimentar Grande Passo em Frente (1958-1959),  e depois continuada com a sua Revolução Cultural dos anos 60 e 70 (com a qual retomou o poder ao nível do Estado), Xiaoping era muito mais favorável a aberturas económicas, que depois resultaram no actual modelo económico designado por Socialismo de Mercado, em que o Estado chinês é um player importante, numa economia tendencialmente aberta com um regime político desprovido da democracia tida ocidental, ao que Edward Said considerou em 1978 como “Orientalismo”. As divergências de modelo económico entre Zedong, líder do PCC e Xiaoping, mero dirigente, resultaram no seu afastamento do aparelho decisório e governativo deste partido durante a Revolução Cultural, a semelhança do que aconteceu com o mesmo João Lourenço, quando foi, em qualquer modo, afastado do BP e da secretaria do MPLA, por ter manifestado a sua intenção de ser candidato deste partido às primeiras eleições pós-paz, na sequência das afirmações do próprio José Eduardo dos Santos que dizia que se fossem realizadas tais eleições o candidato do MPLA não se chamaria José Eduardo dos Santos.

   Tal como Deng Xiaoping tornou-se líder do PCC e presidente da China entre 1978-1989 (isto apesar da oposição de Mao Zedong, morto em 1976, o qual  teria indicado como seu sucessor Hua Guofeng), também João Lourenço, não obstante a chamada “travessia no deserto”, tornou-se presidente da república, como também, a 08/09/2018, viu-se consagrar como presidente do MPLA.

   O carácter transformador da acção de João Lourenço, enquanto presidente da república e do partido que sustenta o seu governo, parece residir justamente nas medidas de tipo económico que já tomou, como por exemplo a aprovação da lei de repatriamento de capitais, que poderá permitir a reaquisição de fundos financeiros e patrimoniais ilegalmente transferidos para a fora do país, ou a reestruturação do modelo de operação da Sonangol, enquanto principal fonte de riqueza do país. 

   Tal como Xiaoping fizera durante o seu consulado, também João Lourenço parece determinado em captar IDEs, com constantes deslocações às principais praças financeiras e dos potenciais investidores, úteis à sua estratégia de diversificação da economia angolana. 

   Todavia, uma das medidas essenciais do seu mandato será efectivamente o de combate à corrupção e à impunidade, que deverá encontrar uma forte resistência no seio de muitos dos seus correligionários e hostes dentro do partido e do Estado. E aqui, a equiparação com Deng Xiaoping registará duas diferenças colossais:

1. Na sociedade chinesa, quer durante a época daquele (durante a qual surgiram as 3 antis: anti-corrupção, anti-burocracia e anti-dispêndio), quer hoje, a corrupção é um crime punível com a morte ou prisão perpétua, como aconteceu em Maio último com Sun Zhengcai, o até então potencial substituto à presidência chinesa depois do segundo mandato do actual presidente chinês Xi Jinping, que com a recente alterção da constituição parece destinado a presidente a vita. Por seu turno, em Angola, o ordenamento jurídico não prevê a pena de morte.

2. Enquanto que na China opera o sistema de partido único, cujo regime é tido como autocrático, marcado por uma forte tradição de direitos económicos e sociais, em detrimento dos direitos civis e políticos, o que, em resumo, facilita a luta contra a corrupção, a detenção e punição exemplar dos prevaricadores, em Angola, pelo contrário, tendencialmente democrático e pluralista, dum lado a sociedade civil é atenta a violação dos direitos humanos, doutro lado, pretende que o governo actue vigorosamente para contrastar este fenómeno, suscitando várias interpretações que visam defender os interesses privados de classes em detrimento dos interesses nacionais e do bem-estar colectivo.

   O discurso preferido já nas vestes de presidente do MPLA, durante o desfecho do VI congresso extraordinário, em Luanda, em que afirmou que no combate à corrupção poderiam tombar, se necessário, inclusive membros e dirigentes do seu partido, se materializado, poderá reconciliar Deng Xiaoping e João Lourenço, no âmbito do debate da História das Ideias Políticas. De resto, a influência da China nos países em vias de desenvolvimento é uma matéria em discussão, e trará ainda muita discussão entre os africanos, os chineses e os ocidentais.

   Em segundo lugar, se enquanto Mestre em Ciências Históricas João Lourenço parece poder seguir o exemplo de Deng Xiaoping ao nível do modelo económico implementado na China e do sucesso que ali teve na redução dos níveis da pobreza (os dados indicam que a China é o país que mais pessoas tirou da pobreza nas últimas três decadas, estimados em 500 milhões de pessoas, enquanto que o The Economist aponta serem próprio os chineses os turistas que mais gastam hoje no mundo, com despesas de cerca de 250 bilhões de dólares em 2017, mais do que os americanos, segundos, com 135 bilhões), da modernidade e da percepção da China e dos chineses como uma potência Mundial; é na sua condição de general na reserva e jogador de xadrez que se aproxima a Kasparov.

   Como se sabe, xadrez é um desporto de elite, cuja característica fundamental é a capacidade de antecedência, ou seja, de antepor-se e de prever o passo ou o movimento a ser dado pelo seu adversário, podendo deste modo blocar ou invalidar a sua jogada. Essa capacidade de prever o movimento dos adversários e agir, no xadrez, se for aplicada à vida política, é uma verdadeira arte de anulação dos actos e efeitos dos adversários políticos.

   Curiosamente, parece evidente ser a “arte do xadrez” que João Lourenço actua na sua relação tanto com os seus adversários políticos na oposição, quanto aos opositores que são do seu próprio partido. Tal foi patente não só no discurso da sua tomada de posse, em Setembro de 2017, como no do Estado da Nação, em Outubro do mesmo ano, e fê-lo novamente durante o discurso já como presidente do MPLA.

   Em substância, ele “apropriou-se” e usa o discurso que caracteriza e caracterizou os partidos na oposição e a sociedade civil (combate à corrupção, à impunidade, ao nepotismo ou a maior abertura nos meios da comunicação públicos). No discurso proferido a 08/09/2018, sabendo das vozes discordantes sobre o gradualismo na implementação das autarquias, afirmou que tudo estava em aberto, o que terá agradado aos que sustentam a implementação das mesmas em todo o país e em simultâneo; sabendo que a sociedade lamentou-se imenso pela bajulação que se vinha acentuando no país, afirmou que já não seria mais tolerada; sabendo que há correntes internas no MPLA que reclamam pelo reconhecimento de Ilídio Machado e Mário Pinto de Andrade como sendo o primeiro e o segundo presidentes deste partido, ele afirmou que ele seria não o terceiro, mas o quinto presidente na história deste partido, algo inédito, pelo menos nas últimas três décadas. 

   Enfim, João Lourenço, como Kasparov, parece ter diluído o discurso da oposição na sua agenda política, de forma a ter um maior consenso e apoio popular em prejuízo daquela. De resto, como dizia Rafael Marques, em entrevista ao jornal Expresso, em Novembro de 2017, “Neste momento, o maior opositor do regime é o João Lourenço”.

   Por conseguinte, se com Deng Xiaoping, João Lourenço quer implementar um modelo económico que garanta a prosperidade a todos (embora pela riqueza acumulada ilicitamente pelos membros do seu partido, deveria actuar também o “modelo Putin anti-oligarquia”), com Kasparov ele poderá superar os escolhos impostos à sua governação pelas circunstâncias históricas, conveniências políticas e ideologias contrastantes, num regime político tendencialmente democrático, onde a eventual repressão contra os direitos políticos e civis adquiridos, a exemplo da repressão de Xiaoping na praça  de Tiananmen em 1989, não seria tolerável entre os angolanos e as angolanas.

Issau Agostinho

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