Lei orgânica sobre as eleições gerais. Imprecisões, incompatibilidades e sugestões


A lei eleitoral constitui uma das normas centrais da legislação eleitoral de um dado Estado e do seu processo eleitoral (no conjunto das leis dos partidos políticos, do financiamento aos partidos políticos e da campanha eleitoral, entre outras). A sua particularidade assenta nos sistemas eleitorais enquanto mecanismos jurídico-quantitativos que guiam a conversão do voto em mandato parlamentar e/ou governativo tácito no decurso de um pleito eleitoral. Vejamos alguns aspectos problemáticos da lei eleitoral em vigor e sugestões afins.


Imprecisões

a).Eleições gerais ou eleições parlamentar-presidenciais

Uma das novidades trazidas pela Constituição da República de Angola (CRA) de 2010 é a transformação da designação de «eleições presidenciais e legislativas» (separadas entre 1992 e 2008) em «eleições gerais». Estas últimas consistem na eleição do presidente da República e dos deputados à Assembleia Nacional num único voto e num único ciclo eleitoral, no intervalo de cinco anos. Isto é, enquanto no primeiro caso o eleitor votava duas vezes, compreendendo dois boletins de voto diferentes, para dois órgãos distintos do poder de Estado (Presidência e Parlamento, podendo votar uma terceira vez no caso da segunda volta presidencial entre dois candidados mais votados), no segundo caso o eleitor, através de um único boletim de voto, no qual marca a sua preferência por uma única formação ou coligação política, vota para titulares de ambos os orgãos de soberania.

Embora se designe por eleições gerais, na realidade, salvo excepções, nem a Constituição, nem a lei eleitoral oferecem uma definição motivada sobre a sua razão de ser, deixando margens para conceitualizações e interpretações autónomas e até contrárias ao espírito do artigo 109º e similares.

Com efeito, no meu entendimento, se as eleições gerais representam a simultaneidade da eleição tanto dos deputados quanto do presidente da República, então, elas são nada mais do que eleições parlamentar-presidenciais. Porém, considerando que se perspectiva a realização, também, das eleições locais (autárquicas), a designação «eleições gerais» poderá ser extensiva, por defeito ou por mérito, àquelas, isto se não houver qualquer exercício de conformação normativa ou de distinção práctica entre ambas as tipologias de eleição. A atribuição por defeito implicaria a compreensão errónea que as autárquicas sejam partes do pacote das gerais, ou a realizar em simultâneo com as gerais; a atribuição por mérito seria, contrariarmente, a inclusão correcta das eleições autárquicas ou da sua realização em simultâneo com as eleições parlamentar-presidenciais. Em todo o caso, com o arranque das eleições autárquicas, seria de esperar uma clarificação no ordinamento jurídico sobre a simultaneidade ou não da realização das eleições parlamentar-presidenciais (ditas gerais) com as eleições autárquicas, a fim de evitar imprecisões e incompreensões.

b). Sufrágio eleitor do presidente da República parcial e indirecto?

O 109º da CRA (2010 e 2021) e o 21º da lei orgânica sobre as eleições gerais nº 30/21 determinam a eleição do presidente da República (e chefe do executivo) pelo círculo nacional […], por meio do sufrágio universal […] directo (CRA, art.143, 1; lei 30/21, art. 20).

Na verdade e em rigor, validando que o círculo nacional eleje apenas 130 deputados, dos 220 previstos (CRA, art. 144), então, o presidente da República é eleito apenas do conjunto dos 130 deputados, e não da totalidade dos 220, embora o parágrafo 2 ex novo do artigo 24º da lei eleitoral revista (nº 30/21) reconheça “…para este efeito, a totalidade dos votos validamente expressos no país e no exterior”. Tal facto revela estarmos em presença do resultado de um sufrágio universal parcial, pelo menos, em termos do quórum eleitoral convertível em mandato presidencial. Por outro, o sistema eleitoral dedutível do artigo 109º da CRA implica a eleição daquele não por via directa, mas sim indirecta, por meio do emprego de um boletim de voto que, efectivamente, vota apenas e “directamente” para os deputados (daí, talvez, o mesmo artigo 109º remeter a sua leitura em conjugação com o 143º e seguintes, que, de facto, regula a eleição directa dos deputados).

Incompatibilidades

a). Apuramento nacional

A Constituição de 2010 e a revisão em 2021 trazem dois círculos eleitorais: o círculo eleitoral nacional e os círculos eleitorais provinciais (art. 144, 1), sendo que 130 deputados são eleitos pelo círculo nacional e 90 pelos 18 círculos provinciais, isto é, 5 para cada [art. 144, 2, a) e b)].

A lei orgânica das eleições gerais de nº 36/11, de 21 de Dezembro de 2011, mantinha o apuramento dos resultados eleitorais a nível municipal, provincial e nacional (Título VIII, Secção II) em consonância com os respectivos círculos eleitorais (sendo os provinciais a somatória dos municipais e o nacional a somatória dos provinciais). Contudo, a revisão desta lei, que resultou na nova lei orgânica das eleições gerais nº30/21, de 30 de Novembro de 2021, revogou o apuramento municipal e provincial, deixando apenas válido o apuramento nacional (art.131), a ser efectuado pela Comissão Nacional Eleitoral (CNE), a quem “cabe centralizar os resultados eleitorais obtidos na totalidade das Mesas de Voto constituídas dentro dos limites territoriais sob sua jurisdição, para efeitos de acompanhamento e verificação de conformidade” (Lei orgânica das eleições gerais nº30/21, art.131, 3).

Assim, visto que a cada círculo eleitoral equivale, regra geral, um respectivo apuramento dos resultados eleitorais (círculo eleitoral nacional equivale apuramento nacional; círculo eleitoral provincial equivale apuramento provincial), a revogação do apuramento provincial pela lei eleitoral revista – quando inclusive nem a revisão da Constituição revogou os círculos eleitorais provinciais (ver art. 144 da CRA de 2010 e a revisão) – constitui uma das mais penosas incompatibilidades jurídico-normativas entre a CRA e esta lei, na medida em que deixa de observar a equivalência que deveria existir entre o círculo eleitoral e o apuramento dos resultados eleitorais. Questionar-se-ia a assência do círculo eleitoral provincial na CRA, quando, pela lei eleitoral revista, esse círculo deixa de apurar os resultados eleitorais produzidos dentro dos seus limites territoriais.

b). Sistemas eleitorais presidencial e parlamentar

Diga-se que um sistema eleitoral consiste em arranjos jurídico-quantitativos, cuja finalidade é a transformação da totalidade dos votos obtidos por uma formação ou coligação política em mandato parlamentar ou governativo tácito – sendo o maioritário e o proporcional os dois mais difusamente utilizados na maioria das praças eleitorais.

No âmbito da lei orgânica sobre as eleições, existem dois sistema eleitorais. O primeiro é o chamado “sistema eleitoral para a eleição do presidente da República” (art.19), pelo qual o território nacional vem designado por “círculo eleitoral único” (ibid), sem, contudo, especificar se tal círculo é o mesmo ou se é diferente do “círculo nacional” (art. 21), já que este último compõe-se de 130 deputados, ao passo que àquele não especifica nem o quórum, nem a sua modalidade de implementação no âmbito da votação. O segundo é o “sistema eleitoral sistema para a eleição dos deputados” (art. 24). Todavia, a falta de especificação da natureza do sistema eleitoral para a eleição do presidente da República pode tornar o aludido sistema (como do art.19 sopraindicado) em mera formalidade normativa, sem substracto tangível. Isto é, a simples indicação da presença de um sistema, sem especificar o respectivo método eleitoral através do qual transformar os votos em mandato presidencial (se maioritário ou proporcional), tornam o referido sistema em não sistema em si, aliás, bastante lógico se considerado a não votação para àquele cargo separado da eleição parlamentar, como a exemplo das eleições de 1992, em que para o presidente da República se usara o sistema maioritário a dois turnos, e para o parlamento o sistema proporcional de Hondt.

À diferença do primeiro caso, o sistema de eleição para os deputados (art.24) é o único que traz e especifica o arranjo jurídico-quantitativo, que é o sistema proporcional (art. 27), aferindo que “Os Deputados à Assembleia Nacional são eleitos segundo o sistema de representação proporcional, obedencendo-se, para a conversão dos votos em mandatos ao critério e regras previstas nos números seguintes” (art,27, 1), dentre os quais o método de Hondt, que continua a reinar desde 1992, não obstante a transição verificada no sistema partidário em Angola, que passou do partido único em 1991, para um sistema hegemónico pós-1992,  ao actual sistema bi-partidário em forjamento desde 2017, em que o MPLA e a UNITA parecem possuir a mesma probalidade de vencer em 2022 mais do que em 2008 ou em 2012.

Não obstante isto, a não inclusão dos nomes dos deputados nos boletins de voto a nível de cada círculo eleitoral provincial de competência, implica que, em práctica, os eleitores, mesmo conhecendo os nomes dos candidatos de cada formação e coligação concorrente durante a campanha eleitoral (lei 30/21, art. 25, 2), não votam senão no cabeça de lista e no símbolo do partido ou de coligação de partidos, pois são esses elementos que aparecem no boletim de voto. A ser assim, além de as listas plurinominais dos respectivos círculos serem fechadas (isto é, estabelecidas centralmente pelos partidos ou coligação e não pela escolha dos eleitores), o voto aos deputados é essencialmente um voto de preferência ao cabeça de lista e ao partido ou coligação de partidos que representa, sendo que a conversão em mandato provincial decorre por meio do sistema proporcional baseado na totalidade dos votos obtidos por aquela formação ou coligação a nível provincial, e não pelos votos individuais de cada candidato, que são, nessas condições, difíceis de determinar, já que seus nomes não aparecem nos boletins de voto, e não aparecendo nos boletins de voto, não podem obter votos individuais.

Sugestões a considerar na próxima revisão

  1. Com o advento das eleições autárquicas, a designação “eleições gerais” deveria ser alterada e substituída por “eleição parlamentar-presidencial”, sobretudo se tal designação não abrangerá àquelas primeiras.
  2. Considerando a existência normativa de dois círculos eleitorais (que compreendem o voto e o apuramento autónomos no âmbito territorial e/ou sistema eleitoral, sempre ante a supervisão da CNE), apenas o círculo nacional, que elege o presidente da República (lei nº30/21, art. 21), deveria ser de apuramento nacional, e continuar o apuramento provincial aos círculos provinciais.
  3. Visto que o sistema eleitoral para a eleição do presidente da República não compreende um método de conversão dos votos em mandato que seja autónomo do sistema de eleição eleitoral para a eleição dos deputados (se vista a natureza do artigo 109º da CRA), o ideal e o mais sensato seria considerar válido e efectivo um único sistema eleitoral, o da eleição dos deputados (que é proporcional, conforme o artigo 27º da lei 30/21), isto pelo menos enquanto prevalecer a não eleição directa e separada do presidente da República dos parlamentares.
  4. Dado o mudamento do sistema partidário em Angola, que do hegemónico (1992-2017) se desenha um outro competitivo e/ou bi-partidário, em que o MPLA e a UNITA aparecem como as duas maiores forças políticas, de facto, e as outras duas históricas (FNLA, PRS) e demais tendem a sucumbir gradualmente, o ideal seria a substiuição do método de Hondt pelo método de Webster. Enquanto o primeiro método proporcional tende a favorecer unicamente as grandes formações políticas (MPLA e UNITA), o segundo garante maior probabilidade de obtenção de mandato aos partidos menores, e com isso uma maior pluralidade.
  5. Os círculos eleitorais provinciais são círculos cujos votos aos 5 deputados locais não advém de votos individuais, mas sim dos votos de preferência dos eleitores ao cabeça de lista de partido ou de coligação de partidos. Dito isto, para que o sufrágio na eleição dos deputados seja verdadeiramente directo (CRA, art.143), os nomes dos candidatos a deputados por cada círculo provincial deveriam comparecer nos boletins de voto, de modos que os eleitores locais possam efectiva e directamente votar neles, mesmo mantendo o seu sistema de representação proporcional.
  6. Em suma, ainda que preservando o actual sistema de eleição decorrente do 109º e 143º, o presidente da República e os deputados à Assembleia Nacional podem ser eleitos separadamente, bastando para o efeito prever dois boletins de votos distintos: um para a eleição do presidente da República no círculo nacional, e outro para os deputados pelos círculos provinciais. Em ambos os casos, os respectivos nomes e símbolos partidários deveriam ser impressos nos boletins de voto.

Issau Agostinho

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