Quénia. Um terceiro pólo de poder de Ruto entre as dinastias de Odinga e Kenyatta


O Quénia foi ao voto para a eleição presidencial no passado dia 9 de Agosto de 2022, cujos dois principais candidatos, William Ruto e Raila Odinga, possuíam a quase paridade de possibilidades de substituir o presidente Uhuru Kenyatta em fim do seu segundo mandato. A victória de Ruto representa a configuração de um terceiro pólo de poder entre as duas principais dinastias políticas daquele país da África Oriental?


Bases históricas das dinastias Kenyatta e Odinga

Contrariamente aos múltiplos movimentos independentistas e nacionalistas que caracterizaram a história do Quénia no intervalo entre as primeiras décadas do século XX e finais de 1960 – como são os casos de KCA (Kikuyu Central Association) dos anos 1930; o KAU (Kenyan African Union) dos anos 1940 –, o KANU (Kenya African National Union), liderado por Jomo Kenyatta, foi se cimentando como o principal movimento, graças à uma política de inclusão no seu seio de importantes figuras políticas oriundas de outros movimentos e de outros grupos identitários, com realce para Oginda Odinga e de Tom Mboya. As divergências internas no seio do KANU, que tiveram lugar em finais de 1960, produziram como um dos mais trágicos eventos a morte de Tom Mboya em 1969, e uma das primeiras e mais significativas dissidências do KANU com a criação, por Oginda Odinga, do seu KPU (Kenya People’s Union) (Ver Issau Agostinho, in Amaral Lala, 2022). A dialéctica político-partidária entre o KANU, de Jomo Kenyatta, e KPU, de Oginga Odinga, somada a proveniência identitária distinta entre um e outro, determinaram o nascimento de duas dinastias políticas que se consolidaram ao longo de décadas sucessivas e que condicionaram e continuam a condicionar o destino do Quénia.

Uma tentativa de terceiro pólo com Daniel arap Moi

Na sequência da morte de Jomo Kenyatta em 1978, Daniel arap Moi substituiu-lhe à frente do Estado e do governo queniano, mantendo-se no poder até 2002. No intervalo entre finais da década de 1980 e início de 1990, Moi operou aberturas do quadro político nacional ao multipartidarismo, adaptando-se quer à onda da chamada «segunda descolonização de África» (Chazan, 1992), quer às pressões internas movidas por Oginda Odinga que, tendo sido expulso do KANU na década de 1980, ao qual tornara após ver seu KPU banido por Kenyatta década mais cedo, tornou-se no mais acérrimos crítico de regime de partido único que Moi operou no Quénia até 1992, altura em que o país realizou as primeiras eleições multipartidárias, que venceu.

Nessa altura, com as várias cisões ocorridas no seio do KANU, sendo a mais relavante a de Mwai Kibaki, que fundou o seu  DP (Democratic Party) em 1991, com o qual foi o terceiro mais votado nas eleições de 1992, e segundo nas de 1997, a tentativa de criação de um terceiro pólo de poder dinástico por Daniel arap Moi viram-se fragilizadas. Contudo, a aposta feita no jovem William Ruto como seu «delfim» político pode ter sido uma das melhores opções tomadas para a futura construção do referido pólo entre duas principais dinastias, a de Odinga, que saiu da vida política após a derrota em 1992 e viu-se substituído pelo seu filho, Raila Odinga – que concorreu nas eleições de 1997 com o seu NDP (National Development Party) e que foi o terceiro mais votado – e a de Kenyatta, cujo filho, Uhuru Kenyatta, manteve-se sob a alçada política tanto de Moi quando de Mwai Kibaki, presidente do Quénia entre 2003 e 2012, altura em que Kenyatta lhe substituirá após as eleições daquele ano.

O terceiro pólo de Ruto. Visão previdente de Daniel arap Moi

Apesar do seu indebolimento entre 1990 e 2002, um dos traços característicos que KANU manteve desde a sua fundação é a inclusão de figuras políticas não necessariamente oriundas do Kikuyu, já que, além de Oginda Odinga e de Tom Mboya (Luos), incluiu também figuras como Daniel arap Moi e William Ruto (Kalenjin), e foi essa multi-culturalidade e/ou trans-identidade cultural que legitimou a sua permanência no poder, incluindo no período de partido único: um partido único, mas multi-forme.

Não tendo sido capaz de convencer os membros do KANU a um pleno apoio a Uhuru Kenyata como candidato consensual do KANU às presidenciais de 2002, Daniel arap Moi manteve-se, porém, confiante que ambos Uhuru Kenyatta e William Ruto, já deputado pelo KANU desde 1997, teriam constituído os dois «prodígios» de poder político daquela força histórica do Quénia em anos a advir. A aliança entre Ruto e Kenyatta deu seus frutos no termo da presidência de Kibaki, pois ambos foram eleitos vice-presidente e presidente do Quénia em 2013 e 2017 pela Aliança Nacional (TNA) e pelo Partido Jubileu, respectivamente, após a renúncia da militância do KANU por razões mais tácticas do que do fundamento da sua relevância histórica e ideológica para ambos, derrotando em ambas as ocasiões Raila Odinga do Orange Democratic Movement (ODM).

Contudo, se durante 8 anos como vice-presidente Ruto não constituiu um terceiro pólo de poder de per se, este tempo serviu-lhe para adquirir experiência governativa e maturidade política úteis ao mesmo fim. Aliás, como prova bastante da sua consolidada experiência, maturidade e notoriedade nos labirintos da “etno”-política, deep-state e dinastias políticas quenianas, terá sido a intenção de Kenyatta não ter publicamente oferecido o apoio à sua candidatura, que ofereceu a Raila Odinga, no âmbito do rapprochement entre ambos em curso desde 2018, para sanar a crise pós-eleitoral de 2017, por meio da chamada Building Bridges Initiative (BBI). “A iniciativa – a criação do Presidente Uhuru Kenyatta e do líder da oposição, Raila Odinga – foi concebida quase em Março de 2018 no famoso acordo «Handshake» que pôs fim a meses de violência pós-eleitoral e confrontos que tinham visto dezenas de mortos pela polícia”(Ver Patrick Gathara, 2019).

Se o apoio de Uhuru Kenyatta a Raila Odinga às presidenciais de 2022 não for lido e compreendido na ideia política queniana, segundo a qual o candidato escolhido e/ou apoiado pelo presidente em fim de mandato perde a eleição sucessiva (em 2002 Uhuru Kenyatta, escolhido pelo presidente Moi, em fim de mandato, perdeu as eleições daquele ano), então, pode significar que Kenyatta pretendia evitar o nascimento do terceiro pólo de Ruto. Porém, se for lído nesta ideia política queniana, então, o rapprochement entre Kenyatta e Odinga foi instrumental (voluntaria ou involuntariamente) para a ascensão de Ruto à presidência do Quénia.

Seja como for, a eleição de Ruto e a confirmação da sua victória pelo Tribunal Supremo do Quénia no passado dia 5 de Setembro, após reclamação de fraude eleitoral apresentada por Odinga, não só revela o nascimento de um terceiro pólo de poder político entre os tradicionais Kenyatta e Odinga, como também o início do fim da polarização política entre àquelas duas dinastias políticas, com ambos herdeiros de Jomo Kenyatta e Oginda Odinga às portas de saída da vida política a nível do Estado (terminados dois mandatos de um, e 5ª derrota consecutiva às presidenciais do outro, agora com 77 anos). Revela, igualmente, que Daniel arap Moi foi previdente ao ter apostado na carriera política de Ruto desde a sua mocidade e que apesar de várias metamorfoses ocorridas no seio do KANU, os seus rebentos políticos e ideológicos continuam ao leme do Estado queniano desde a ascensão à independência do em 1963, cuja estratégia de inclusão e/ou de coabitação entre os Kikuyus e os Kalenjin mantém-se como vencedora, como previsto, de igual modo, pelo Jomo Kenyatta com aposta feita em Moi, e não em Odinga.

Assim, nos próximos decénios, salvo mudanças radicais na cultura política do país, aos Odingas e Kenyattas se juntarão os Rutos, sendo que entre os dois últimos parecer vigorar uma aliança natural ao poder já consolidada naquele país da África Oriental, sem desprimor das inúmeras famílias políticas de grande relevo histórico e alcance prático no Quénia.

Issau Agostinho

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