Transição democrática impraticável no Sudão. Duas hipóteses de compromisso realista


As manifestações sudanesas de 2018 e 2019 conduziram a queda do Presidente Omar al-Bashir, porém a transição para o governo civil naquele país continua a mercê das disputas militares entre, pelo menos, dois campos opostos. No campo das hipóteses, qual poderá ser o compromisso para o êxito da Revolução Sudanesa e a consequente transição democrática?


Sectarismo religioso e militar

É consabido que em quase 70 de independência do Sudão, o que era o maior país do continente africano em termos de área geográfica até 2010 (Ver Banco Mundial), teve apenas dois governos civis,  antecedidos por regimes militares e afastados pelos golpes militares, nomeadamente, o de Ismail Al-Azhari, eleito presidente em 1965 e golpeado em 1969, e o de Ahmed al-Mirghani, eleito em 1986 e golpeado em 1989 por Omar al-Bashir (Ver World Atlas), em meio ao que a historiografia designa Segunda Guerra do Sudão (1985-2005). Tanto esta guerra quanta a Primeira Guerra do Sudão (1955-1972) foram, essencialmente, conflitos para a manutenção de entourages militares no poder e o separatismo polítigo-geográfico por motivos identitário-religiosos, com a região ao Sul do Sudão, dada a sua identidade maioritariamente cristã, a exigir maior autonomia do governo central ao Norte, de maioria musulmana, que obteve em 1972.

No entanto, consta que a imposição da Sharia em todo o Sudão por Gaafar Nimeiry, antecessor de al-Mirghani e autor de golpe de Estado contra Al-Azhari, conduziu a eclosão da segunda guerra entre o regime sudanês (na transição entre al-Mirghani e al-Bashir) e o Movimento Popular de Libertação do Sudão e o seu exército, terminada em 2005 com a assinatura dos Acordos de Naivasha, os quais formalizaram o nascimento do Sudão do Sul, em Julho de 2011 (Ver UNMIS).

Primavera árabe adiada

As manifestações populares contra o regime do Presidente Omar al-Bashir foram constantes desde, pelo menos, 2011, na onda das Primaveras Arábes que sacudiram as autocracias no Norte de África e no Médio Oriente e produziram a queda desssas autocracias no Egipto, Tunísia, Líbia ou no Yemen. Fragilizado internamente pela repartição do território e externamente pelas pressões dos movimentos globais de direitos humanos, os quais o acusaram de crimes perpetrados durante a guerra de 1985-2005, e com o TPI a emitir um mandado de captura que pende sobre si desde 2010 (Ver TPI), o presidente sudanês reforçou o seu poder interno, criando ou formalizando estruturas militares paralelas ao exército regular, como é as RSF (Forças de Apoio Rápido), legalizadas em 2017 como uma “unidade militar autónoma” (Ver Aljazeera) do exército regular.

Essa medida revelava os temores que o presidente sudanês tinha sobre o risco de golpe militar contra si como, aliás, é da práxis naquele país, bem como, ao formalizá-las como unidade militar autonóma das chefias militares do Sudão, de um lado, criou as condições objectivas para um “novo” sectarismo militar e fonte de instabilidade política-militar, propondo-se, ao mesmo tempo, como o equilibrista entre os dois campos securitários paralelos e figura indispensável para sua coabitação tanto no campo militar, como no político. Mas, de outro lado, garantiu que antigos aleados das “chamadas milícias Janjawid” (Ver Aljazeera) sejam um dos pernos do poder no Sudão e um escudo protectivo pessoal enquanto ele estivesse no comando ou após o fim do seu regime.

Todavia, a continuação de manifestações populares, sobretudo a de 2013, embora repremida, determinados grupos de pressão locais, nomeadamente, “Forças Consensuais Nacionais (NCF), a Frente Revolucionária Sudanesa (SRF), o Partido Nacional Umma (NUP), e a recém-formada Iniciativa da Sociedade Civil (CSI)” (Ver Stephen Zunes, Sudan’s 2019 Revolution. The Power of Civil Resistance, Vol.5, April 2021) assinaram um memorando  que “exigia o fim do partido único e o estabelecimento de um governo de transição que conduziria a um processo constitucional e prepararia as eleições nacionais” (Zunes, pp.3-4).

Foi neste clima do reforço da tomada de consciência dos grupos da Sociedade Civil Sudanesa que as manifestações contra o aumento do preço do pão em Dezembro de 2018 redundaram em manifestações contra o regime do Presidente Omar al-Bashir, afastado do poder em Abril de 2019 por um golpe de Estado comparticipado pelas ambas chefias militares do exército regular e das RSF.

Revolução traída

Apesar do sucesso aparente das FFC (Forças para Liberdade e Mudanças), compostas pela maioria dos movimentos de 2013 e de outras associações de classe e de profissão do Sudão, a indicação, em Agosto de 2019, de um governo de transição liderado pelo economista Abdalla Hamdok, abriu esperaças para o “regresso” a um governo civil e democrático no Sudão. O governo de Hamdok, integrado por militares e civis, tinha como mandato a preparação e realização de eleições gerais em 2022. Todavia, em Outubro de 2021 um outro golpe militar com a participação dos mesmos autores miltiares, afastou o Primeiro Ministro Hamdok do poder transitório destinado a instauração de um regime democrático e civil.

Tal como suponho que tenha sido a visão equilibrista e antecipadora dos eventos do antigo Presidente Omar al-Bashir, o golpe de Outubro de 2021 acontece quase dois meses depois do anúncio da Ministra dos Negócios Estrangeiros sudanesa da extradição de al-Bashir para o TPI, em Haia (Ver La Repubblica), a fim de ser julgado pelos crimes que pendem sobre si desde a emissão do mandado de captura de 2010. No caso, se as chefias militares de RSF forem ainda leais ao antigo presidente sudanês ou se temem das eventuais responsabilidades compartilhadas pelos actos tidos como criminosos pelo TPI, então, o golpe de Estado de Outubro de 2021 pode ter sido efectuado para afastar a possibilidade que ele fosse extraditado e julgado em Haia, pois, provavelmente, tais chefias e/ou ex-milicianos Janjawid receassem que após al-Bashir tocasse a eles.

Duas hipóteses de compromisso realista para o êxito da Revolução Sudanesa?

Mais uma vez, não obstante o acordo assinado em Dezembro de 2022, que previa uma outra transição guiada por uma figura civil e a realização de eleições em 2 anos, resulta que ambos os campos militares não foram capazes nem de encontrar a referida figura civil (eventualmente Hamdok não era mais pessoa indicada), nem o consenso sobre a integração das RSF no exército regular do Sudão, o que conduziu, como se alega, a eclosão de confrontos militares entre ambos em curso desde o passado dia 15 de Abril de 2023, isto é, entre as RSF, lideradas por Mohamad Hamdan Dagalo, dito Hemedti, e o general do exército sudanês e presidente, de facto, do Sudão, Abdel Fattah al-Burhan.

Esse quadro de confrontos militares entre ambos os campos não só representa a pretensão da manutenção da influência militar no poder civil e político no Sudão, como também o adiamento dos efeitos da Revolução Sudanesa e de todos os esforços da sua sociedade civil dos últimos dez anos.

Como primeira hipótese, reconhecendo a prevalência de regimes militares no Sudão nas últimas sete décadas, a salvaguarda dos resultados da Revolução Sudanesa não deveriam ignorar a influência dos militares no poder civil, equacionando a sua participação num futuro governo civil tanto em termos provisórios ou mesmo até permanentes, a semelhança da Nigéria, onde há uma alternância e/ou coabitação entre ex-militares e civis no poder central.

Como segunda, o antigo Presidente Omar al-Bashir, embora em detenção desde a saída do poder em 2019, pode ser uma das figuras chave para a resolução deste impasse político-militar no Sudão, dado o eventual espectro de interesses cruzados com as RSF, e inclusive, a aproximação ao actual líder de facto do país. Enfim, o seu equilibrismo táctico pode ser útil ao sucesso da Revolução Sudanesa, que em troca poderá solicitar a amnistia pelos crimes comuns cometidos no Sudão. Na ausência, a saída e que um dos campos vença o confronto militar, na esperança que devolva o poder aos civis (algo raro no Sudão). Até lá, muito mais sofrimento poderá ser causado, inutilmente, ao povo sudanês.

Issau Agostinho

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