Manifestação: um direito constitucional e um instrumento de pressão política

Luanda tem vindo a assistir a manifestações nos últimos dois meses, como a que foi realizada pelo sindicato dos médicos contra a morte do afilhado Sílvio Dala e outras paralelas organizadas por vários grupos de cidadãos agastados com perdas humanas nas mãos de agentes da polícia, ou a que foi realizada no passado dia 24 de Outubro, cujos objectivos e promotores têm suscitado polémica. Porém, a manifestação é só um direito constitucional ou é também um instrumento de pressão sócio-política e de contestação do status quo?


Leitura social e jurídica desencontrada

   Na sequência da manifestação do dia 24 de Outubro de 2020, há relatos de violação do direito de manifestação, caracterizada pela presença e repressão policial no percurso em que ela era prevista acontecer; há relatos de apreensão de centenas de participantes, de entre elas, figuram o secretário da JURA e o presidente do Movimento dos Estudantes Angolanos. Há quem fale inclusive em morte de, pelo menos, um participante, o que seria de condenar a todos os títulos.

   Como é recorrente nesses casos, há vozes que criticam a sua realização, principalmente pela não observância das normas de prevenção e contenção da expansão de contágio com Covid19 (distanciamento social, uso de máscaras faciais, só para citar estes), e há quem critique a violação de preceitos constitucionais relativos a manifestação e a inconstitucionalidade do decreto presidencial que proíbe ajuntamentos e os limita a um número máximo de 5 pessoas.

   Naturalmente, a conflitualidade jurídica relativa à aplicação de normas constitucionais e infra-constitutionais é uma matéria que atende os ajuizados em direito. 

Manifestação como fim e como meio

   Do ponto de vista do realismo político, a manifestação é um arranjo que, nas democracias constitucionais do tipo liberal ou neoliberal, pode ser utilizada tanto como um fim, quanto como um meio. Isto é, só há manifestações em sociedades com a hierarquização política, em que uma força governa e outras se opõem quer nas instituições do Estado, quer em ágoras ou praças públicas. Há também manifestações de apoio ao status quo, mas aqui falamos apenas a de contestação do status quo.

   Com efeito, a manifestação como fim funciona como direito em si, como o usufruto desse elementar preceito normativo para se opor ou contestar um dado fenômeno social prejudicial à sociedade como um todo. No caso, a manifestação dos médicos para contestar a morte do seu afilhado. 

   A manifestação como meio funciona como pretexto para vários fins, desde a testagem da capacidade de mobilização dos organizadores à verificação dos níveis de adesão popular aos ideais, entre outros. No caso, a manifestação do dia 24 de Outubro (embora um direito constitucional inegável, reitera-se), parece mais um meio do que um fim em si mesmo, se olharmos para a presença de individualidades (na condição de organizadores ou de meros participantes) de dadas forças políticas e da sociedade civil organizada ou esporádica contrárias ao status quo, que em muitos casos podem até não ser afilhados àquelas. A necessidade de eventual testagem política pode residir mesmo no facto probabilístico de não serem afilhados, pelo que, ao não se saber ao certo quem terão sido os organizadores, é questionável considerá-la como manifestação do partido político A ou B.

   Esta transformação do direito de manifestação em instrumento de testagem da capacidade de mobilização acontece quando uma força política ou cívica pretende medir, em termos concretos, quantas pessoas ou cidadãos estariam interessados em aderir ao seu programa de governo ou ao manifesto político contra o status quo, enquanto a capacidade de adesão visa constatar, em termos sentimentais e emocionais, quantos estariam dispostos a bater-se pelos ideias constantes do programa ou do manifesto, quer durante a manifestação, quer depois de ela acontecer, capitalizando ulteriormente sobre os sentimentos de raiva, medo, insegurança, incerteza e injustiça criados nos participantes, em particular, e na sociedade, em geral, se é o caso.

   Assim, se do ponto de vista formal, ambas as manifestações são similares e repousam no mesmo preceito constitucional (art.47 CRA), será do ponto de vista substancial que diferem, já que uma contesta a violação do direito à vida de um dos seus membros, sem, no entanto, exigir a demissão da força política governante, a outra pronuncia slogans que vão desde a “realização de eleições autárquicas”, a outros que consideram o actual presidente da república “ditador”, ou ao “fim do governo do MPLA”, “a falta de empregos”, outros inclusive proclamam-se “dispostos a morrer”. 

Questões por esclarecer

1. Com estes slogans, e supondo que uma dada força política tenha sido um dos organizadores passivos ou activos da manifestação de 24/10, questiona-se se, além daquele meio, pretenda igualmente precipitar o fim do predomínio do MPLA pela via da insurreição popular, transformando o meio no fim? 

2. A audiência do dia 26 de Outubro de 2020, dois dias após a manifestação, do presidente da república a Isaías Samakuva, ex-presidente da UNITA, visa deslegitimar a eventual colaboração entre a UNITA de Adalberto Júnior com grupos de pressão e da sociedade civil, prática não comum nos anos em que esteve à frente do partido, ou refutar a transformação da insurreição no fim?

Curso e efeitos da manifestação

   Em todo o caso, quando uma manifestação tem lugar como mero acto de protesto contra a injustiça, a discriminação ou a insatisfação perante a violação de um direito ou uma conduta socialmente condenável, ocorre num ambiente de tranquilidade e cordialidade, respeitando a ordem pública e a tolerância para com grupos de contra-manifestação eventualmente presentes no mesmo espaço. Pelo contrário, quando é utilizada como meio para alcançar vários objectivos de agendas sobrepostas, transformando-se num instrumento de pressão sócio-política contra a ordem estabelecida, resulta em desacato e confronto com as autoridades policiais devidamente identificados, em caos públicos, na vandalização do patrimônio, na apreensão de participantes e até mesmo em danos humanos, produzindo factos políticos e condenação pública interna e externa, que podem jogar em favor dos manifestantes ou não, em função da amplitude dos actos e da capacidade de maximização ou minimização dos efeitos de ambas as partes (manifestantes e poder político).

Os vectores das manifestações anti status quo

   O estado do ambiente social e os níveis de desenvolvimento humano jogam um papel fundamental na legitimação das manifestações, pois funcionam como vectores propulsores das mesmas. Por exemplo, na presença de precariedades, entendidas como escassez ou ausência do usufruto dos mais elementares direitos econômicos, privados pelos desvios de fundos públicos, pelas burocracias, pelo desemprego, a inflação e redução de poder de compra, pelo aumento de impostos, entre outros, as manifestações não só acontecem, mas serão tendencialmente frequentes.

Políticas públicas centradas na dignidade da pessoa humana é a solução

   Considerando que a política obedece a mesma lei de mercado numa economia de livre iniciativa, quanto mais insatisfeitos forem os angolanos com o status quo, mais manifestações de contestação ao regime haverá (curiosamente aproveitando as aberturas democráticas em curso no país), e independentemente da crítica aos partidos políticos pelo seu aproveitamento político (legítimo numa sociedade hierarquizada politicamente), o governo deve privilegiar uma política pública que promova a igualdade econômica, que crie empregos, que incentive o auto-empreendedorismo, que corrija as insuficiências no acesso aos serviços sociais elementares, enfim, uma política pública que coloque o bem-estar dos angolanos no centro da sua acção. 

   Ao fim ao cabo, quando a manifestação é um direito, ela é geralmente pacífica, mas quando é um instrumento de pressão sócio-política, tenderá para a violência, cujo aproveitamento político corresponde ao realismo político. Embora do ponto de vista da moralidade pública a instrumentalização possa ser condenável, do ponto de vista do realismo político ela é legítima e obedece inclusive a ética política tendente ao poder, sobretudo se feita por um partido com vocação ao poder de Estado.

Issau Agostinho

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