Governança global em discussão. Principais exigências do Sul Global


Madrid e Paris foram palcos de discussões de desafios globais e da governança global. No segundo semestre estão previstas outras sessões no seio dos BRICS, na África do Sul, do G20, na Índia e do Grupo do Banco Mundial, em Marrocos. Estará em forja a futura arquitectura de governança global?


Efeitos do conflito russo-ucraniano

A ordem internacional vê-se desafiada sempre que um Estado-potência ou um conjunto de Estados questionam a legitimidade e a justeza da ordem dominante e o domínio do Estado-potência ou bloco de Estados que condicionam a sua existência e funcionamento.

Apesar de actual arquitectura da governança global, a sua eficácia e equidade, terem vindo a ser questionadas nas últimas décadas, mormente pelos Estados do Sul Global e, através desses, pelos demais do Norte Global, o conflito russo-ucraniano acelerou a crise de legitimidade desta arquitectura, tanto pela via da paralização do Conselho de Segurança, pelo desalinhamento internacional sobre a condenação da Operação Militar Especial na Assembleia Geral da ONU, assim como pela percepção da hipocrisia e duplo standard que o Norte Global mostrou em relação ao conflito entre russos e ucranianos, ou ainda pela utilização de instrumentos e/ou instituições internacionais para o emprego de sanções unilaterais.

Estratégias Nacionais de Seguranças desafiam a ordem actual

Pelo menos nos últimos dois anos foram lançadas estratégias nacionais e/ou globais que minam ou que não funcionariam dentro da lógica da ordem pós-1945. Isto é, em termos reumidos

  • na Nova Estratégia da OTAN, aprovada em Madrid, em 2022, a China é tida como um competidor global, ao passo que a Rússia é uma ameaça à segurança euro-atlântica;
  • no Novo Conceito da Política Externa da Rússia, aprovada este ano, dentre outros, o actual conflito russo-ucraniano será resolvido e/ou determinará o nascimento de uma nova ordem internacional multipolar, em que os EUA não serão mais o Estado-potência dominante;
  • a Alemanha adoptou a sua primeira Estratégia de Segurança Nacional que, além de alinhar-se na concepção da OTAN, prevê a China como uma ameaça crescente. Prevê-se que uma nova Estratégia especificamente dedicada à China seja aprovada após reuniões de alto nível entre o Chanceler alemão e o Primeiro-ministro chinês, em Berlim, em Junho de 2023.

Estes documentos-rectores de política externa revelam tanto uma constatação geral do mutamento que as relações internacionais registaram nas útlimas décadas, como também a necessidade da salvaguarda do status quo da ordem vigente. Todavia, as divergências de visões e de conteúdos entre uma estratégia e outra, reflectem que tanto a manutenção ou a mudança poderão produzir conflitos de alta ou baixa intensidade, se não houver uma convergência sobre a necessidade da refundação da ordem de 1945.

Encontros de Madrid e de Paris

Em Madrid a organização Concórdia realizou, de 15 a 16 de Junho, um encontro com decisores dos sectores público e privados, dentre outros, sobre os desafios globais actuais, tais como o aquecimento global e a transição verde, a revolução digital e inteligência artificial, bem como a segurança internacional, e como é que podem ser resolvidos em conjunto pela comunidade internacional. Apesar de ser um encontro com forte impressão euro-cêntrica, transpareceu que a resolução desses desafios não poderá ter lugar sem o contributo e a participação de todos.

Na semana seguinte, o Governo francês acolheu, em Paris, líderes mundiais do Sul e do Norte Globais, das instituições financeira multilaterais, activistas ambientais, dentre outros, para discutir o Novo Pacto Financeiro Global. Além de abordar “As questões relativas a um imposto sobre o transporte marítimo mundial e outras grandes fontes de emissões de gases com efeito de estufa, bem como a forma como os países devem criar um fundo para perdas e danos” (Fiona Harvey, The Guardian), o Presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, voltou a sublinhar a necessidade da reforma da governança global para uma maior representatividade, referindo que “Os membros permanentes já não representam a realidade política de 2023. Embora os representassem em 1945, em 2023 é necessário fazer uma mudança. A ONU tem de voltar a ter representação. Para ter força política. A ONU foi capaz de criar o Estado de Israel em 1948 e não é capaz de resolver o problema da ocupação do Estado Palestiniano” (Presidência da República).

Na mesma senda, o Presidente queniano, William Ruto, defendeu a importância de uma maior presença e voz de países como o Quênia, nos organismos financeiros mundiais, reafirmando que “África não quer nada gratis. Mas precisamos uma nova ordem financeira internacional, em que o poder não está nas mãos de poucas pessoas” (Nation).

Cimeira dos BRICS na África do Sul

Para que essas exigências do Sul Global não caiam em letra morta, como acontecem com os apelos para a reforma do CS há mais de 3 décadas, o continente africano, que representa um das partes centrais da configuração do Sul, precisaria realizaria conferências ao nível de culpa da UA, com a participação dos seus estudiosos, empresários, activistas ambientais e demais figuras, para estabelecer um plano concreto, que contenha uma visão partilhada sobre a reconfiguração da ordem vigente.

A nível geral, a cimeira dos BRICS, a ter lugar em Agosto, na África do Sul, poderá constituir uma das etapas mais importantes tanto para refundação da ordem antiga, ou a emergência de ordem paralela, em que os grandes pólos populacionais do mundo (China, Índia, África), as economias emergentes (BRICS) representam uma alternativa a ordem pós-1945.

Para evitar uma ordem internacional fragmentada e conflitual, todos os Estados do mundo precisariam comprometer-se ao comércio internacional, ao direito internacional, a justeza e representatividade nas organizações multilaterais de natureza política, securitária e económica, num mundo multipolar e de equilíbrio de poder. 

Issau Agostinho

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