Síntese do olhar da África do Sul ao conflito israelo-palestiano junto da Corte Internacional de Justiça


No dia 28 de Dezembro de 2023, o Governo Sul-Africano, através da sua Embaixada junto dos Países-Baixos, em Haia, submeteu ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) um processo, designado por África do Sul vs. Israel, que inclui uma “(…)Petição para que o Tribunal adopte medidas provisórias para proteger os direitos aqui invocados de uma perda iminente e irreparável” (Ver aqui).


No dia 29 de Dezembro de 2023, através de uma Nota de Imprensa No. 2023/77, o TIJ comunicou a recepção, a submissão e o registo do referido processo, resumindo a legislação evocada, as alegações referentes à violação da Convenção sobre a Prevenção de Genocídio e a solicitação de aprovação de medidas cautelares urgentes a serem aplicadas por Israel na Faixa de Gaza (Cfr. aqui)

Algumas notas referentes a prováveis justificações profundo-históricas do Processo África do Sul v. Israel

Para lá das meras justificações decorrentes das obrigações e dos direitos enquanto Estado-membro da ONU e do TIJ, do compromisso para com a moralidade pública internacional, da observância das normas do direito internacional e do direito internacional humanitário, outras causas ou justificações históricas “profundas” podem ter impelido a África do Sul a tomar a peito a causa palestiana neste momento particular de confronto entre Hamas e Israel, de modo tão singular que é o único Estado do mundo a apresentar processo semelhante ao TIJ.

Uma primeira pode estar assente na semelhança entre a percepção da existência de apartheid em Gaza e a segregação racial vivida pelos sul-africanos durante a vigência do Apartheid na África do Sul entre 1948 e 1994, altura em que o ANC chegou ao poder com Nelson Mandela. Uma segunda causa conexa a primeira pode ser a colaboração havida entre Israel e África do Sul, sobretudo, após a guerra de Yom Kippur de 1973, no domínio da ordem pública e da defesa, com ramificações inclusive em Angola.

Relativamente a essa segunda causa, o Jornal The Guardian publicou em 2006 uma série de investigações levadas a cabo por Chris McGreal relativas à aliança “clandestina” entre Israel e África do Sul. Dos dados revelados pelo autor se depreende dois momentos na relação entre Israel e o continente africano durante a década das independências, isto é, o momento antes de Yom Kippur e o momento depois de Yom Kippur. No primeiro momento “Israel criticou abertamente o apartheid durante as décadas de 1950 e 1960, enquanto construía alianças com governos africanos pós-coloniais” (Ler aqui).

No segundo momento, a “(…) maioria dos Estados africanos rompeu as relações após a guerra do Yom Kippur de 1973 e o governo de Jerusalém começou a ter uma visão mais benigna do regime isolado de Pretória. As relações mudaram tão profundamente que, em 1976, Israel convidou o primeiro-ministro sul-africano, John Vorster – um antigo simpatizante nazi e comandante da fascista Ossewabrandwag, que se aliou a Hitler – a fazer uma visita de Estado” (idem).

O jornalista escreve citando um agente ligado aos factos que afirma o seguinte: “Estivemos envolvidos em Angola como consultores do exército [sul-africano]. Havia lá oficiais israelitas a cooperar com o exército. A ligação era muito íntima”(idem).

Numa altura em que quer o MPLA, quer o ANC lutavam para a libertação do jugo colonial e do apartheid, respectivamente, a aliança entre Israel e África do Sul terá tido o impacto no reforço do apartheid da África do Sul e da sua força repressiva, já que, segundo a investigação de Chris McGreal, “A par das fábricas estatais que produziam material para a África do Sul, existia (…) que desenvolveu uma indústria lucrativa de venda de veículos anti-motim para serem utilizados contra os manifestantes nos bairros negros”(idem).

Das causas profundas à memória colectiva sul-africana

Reconhecendo o poder da memória e a sua implicação a posterior nas relações entre os Estados, presume-se que o caso África do Sul v. Israel no TIJ possa, de facto, pretender evitar que o sofrimento semelhante causado aos sul-africanos durante a era do Apartheid se perpetue sobre os palestianos. Aqui, a memória das atrocidades vividas pelos sul-africanos suscita neles a empatia em relação aos palestianos de Gaza. Mas, ao mesmo tempo, almeja “responsabilizar” postumamente os dados causados aos sul-africanos da relação decorrente daquele passado entre Israel e o Apartheid em prejuízo da libertação da maioria negra sul-africana. E aqui, a memória das mesmas atrocidades pretende obter uma reparação, ainda que simbólica, em forma de adopção pelo TIJ e aplicação por Israel de medidas cautelares em benefício dos palestianos em Gaza.

Estrutura e conteúdo do Processo África do Sul v. Israel

O documento em causa possui 84 páginas, 151 parágrafos devidos em 8 capítulos, nomeadamente, a Introdução; a Jurisdição do Tribunal; as Evidências (Introdução, Historial, Actos de genocídio cometidos contra palestianos, manifestação de intenção de genocídio pelas autoridades israelitas, reconhecimento da intenção de genocídio israelita contra palestianos); as Reivindicações da África do Sul; o Alívio; as Medidas cautelares; a Revisão do caso e o Representante sul-africano junto do TIJ no caso que o opõe a Israel.

Do conjunto desses 8 capítulos, importa rever em síntese pelos menos alguns conteúdos relativos às evidências de eventual risco de cometimento de genocídio em Gaza e os relativos às medidas cautelares urgentes solicitados por África do Sul.

Antes de tudo, a legislação internacional evocada a tutela dos palestianos é a Convenção sobre a Prevenção e Punição de Crimes de Genocídio, de 1948. Para fins de comunicação ao Estado de Israel sobre o processo a ser apresentado, seguido de múltiplos eventos de relações públicas internas e externas da África do Sul sobre o caso, no dia “Em 21 de Dezembro de 2023, a África do Sul enviou uma Nota Verbal à Embaixada de Israel na África do Sul, na qual manifestava a sua preocupação com ‘relatos credíveis de que foram e podem ainda ser cometidos actos que correspondem ao limiar do genocídio ou crimes conexos, tal como definidos na Convenção de 1948 para a Prevenção e Punição do Genocídio, no contexto do conflito’ em Gaza” (Ler aqui).

Sobre as evidências

As evidências apresentadas pela África do Sul estão subjacentes ao capítulo III, sub-dividos em alinhas a). introdução dos factos, b). historial, c). actos de genocídio cometidos contra palestianos, d). manifestação de intenção de genocídio pelas autoridades israelitas e a alinha e). reconhecimento da intenção de genocídio israelita contra palestianos.

Trata-se do capítulo central, mais consistente e longo do caso África do Sul v. Israel, compreendendo os parágrafos que vão do 18 a 109, da página 9 a 70, ocupando, por isso, quase a totalidade da sua estrutura e conteúdo, cuja síntese pode revelar-se incoerente ou incompleta, por isso se aconselha aos interessados a visualização cabal do documento para uma melhor compreensão.

Em síntese, na alinha a), parágrafo 18, nota-se o facto de Gaza ser a zona mais densamenta povoada do mundo, sendo que numa área de cerca de 365km2 vivam aproximadamente 2,3milhões de habitantes, metade das quais crianças. A nota alega que “Até 29 de Outubro se estima que 6 mil bombas por semana foram lançadas naquele pequeno enclave” (idem, p. 9), citando ainda a Resolução ESIO/22, de 12 de dezembro de 2023, sobre a proteção da população civil e o cumprimento das obrigações jurídicas e humanitárias, que estimava que “Os civis de toda a Faixa de Gaza enfrentam um grave perigo. Desde o início da operação militar de Israel, mais de 15.000 pessoas terão sido mortas, mais de 40% das quais eram crianças. Milhares de outras ficaram feridas. Mais de metade das casas foram destruídas. Cerca de 80% da população de 2,2 milhões de habitantes foi deslocada à força para zonas cada vez mais pequenas. Mais de 1,1 milhões de pessoas procuraram refúgio em instalações da UNRWA em toda a Faixa de Gaza, criando condições de sobrelotação, indignas e anti-higiénicas” (idem, p. 10).

A alinha c) sobre os actos de genocídio cometidos contra palestianos é a peça central do capítulo III, composto de 30 páginas, com parágrafos entre 43 e 100. O documento resume-o da seguinte forma: “Esta secção apresenta uma panorâmica dos actos de carácter genocida praticados por Israel, tendo em conta a sua natureza, âmbito e contexto” (idem, p. 31). A secção ou alinha c) compreende 8 sub-capítulos cada um contendo evidências específicas desta «panorâmica». Isto é:

  1. Morte de palestianos em Gaza traz, mais uma vez, o número de vítimas mortais registadas até àquela data;
  2. Causar danos corporais e mentais graves aos palestinianos em Gaza revela que “Mais de 55.243 palestinianos foram feridos nos ataques militares de Israel a Gaza desde 7 de Outubro de 2023, a maioria dos quais mulheres e crianças. As queimaduras e as amputações são ferimentos típicos, estimando-se que cerca de 1.000 crianças tenham perdido uma ou ambas as pernas” (idem, p. 35); em 3. Expulsão em massa das casas e deslocação dos palestinianos em Gaza “Estima-se que mais de 1,9 milhões de palestinianos dos 2,3 milhões de habitantes de Gaza – cerca de 85% da população – foram forçados a abandonar as suas casas. Os que não podem sair ou se recusam a ser deslocados foram mortos ou correm o risco extremo de serem mortos nas suas casas” (idem, p. 37); em
  3. Privação do acesso a alimentos e água adequados para os palestinianos em Gaza alega-se que “Em 9 de Outubro de 2023, Israel declarou um ‘cerco total’ a Gaza, não permitindo a entrada de electricidade, alimentos, água e combustível na faixa. Embora o cerco tenha sido parcialmente aliviado desde então, com alguns camiões de ajuda a serem autorizados a entrar desde 21 de Outubro de 2023, continua a ser totalmente insuficiente e muito abaixo da média anterior a Outubro de 2023 de aproximadamente 500 camiões por dia” (idem, p. 40); 5.Privação do acesso a abrigo, vestuário, higiene e saneamento adequados para os palestinianos em Gaza nota que “A maioria dos 1,9 milhões de palestinianos deslocados em Gaza procura abrigo nas instalações da UNRWA, que consistem principalmente em escolas e tendas. Estes locais não são seguros: até à data – e apesar de Israel ter recebido as coordenadas de todas as instalações das Nações Unidas – Israel matou centenas de homens, mulheres e crianças palestinianos que procuravam abrigo nas instalações da UNRWA e feriu mais de mil” (idem, p.45); 6.Privação de assistência médica adequada aos palestinianos em Gaza cita uma missiva de 4 de Dezembro de 2023 diriga por Médicos Sem Fronteiras ao Conselho de Segurança, na qual pode ler-se “Israel tem demonstrado um desprezo flagrante e total pela protecção das instalações médicas de Gaza. Estamos a assistir à transformação dos hospitais em morgues e ruínas. Estas instalações, supostamente protegidas, estão a ser bombardeadas, alvejadas por tanques e armas, cercadas e invadidas, matando doentes e pessoal médico. A Organização Mundial de Saúde registou 203 ataques contra os serviços de saúde que causaram pelo menos 22 mortes e 59 feridos entre os profissionais de saúde em serviço” (idem, pp. 47-48); em 7. Destruição da vida dos palestinianos em Gaza pode ler-se que “Em 16 de Novembro de 2023, 15 relatores especiais das Nações Unidas e 21 membros de grupos de trabalho das Nações Unidas, alertando para um ‘genocídio em curso’ em Gaza, observaram que o nível de destruição de ‘habitações, hospitais, escolas, mesquitas, padarias, canalizações de água, redes de esgotos e de eletricidade … ameaça tornar impossível a continuação da vida dos palestinianos em Gaza”’ (Idem, p.54) e, por fim, em 8. Imposição de medidas destinadas a impedir os nascimentos na Palestina “(…) Estima-se que duas mães sejam mortas por hora em Gaza. Estima-se que, só até 11 de Dezembro de 2023, tenham sido mortas mais de 7.729 crianças e que pelo menos 4.700 outras mulheres e crianças estejam desaparecidas e que se acredite estarem enterradas sob os escombros. Há vários relatos de testemunhas oculares de mulheres grávidas que foram mortas por soldados israelitas, nomeadamente quando tentavam aceder a cuidados de saúde” (idem, pp. 57-58).

Essas alegações da África do Sul não se limitam apenas ao que está descrito acima, mas são seguidas ou antecidas por fundamentações ao longo da exposição de cada sub-capítulo, trazendo dados por si recolhidos directa ou indirectamente e constantes do processo. A propósito de dados semelhantes como as que constam na alinha e) sobre o reconhecimento da intenção de genocídio israelita contra palestianos, o caso arruola constatações semelhantes apresentadas por demais organismos internacionais, as quais referem em várias resoluções, decisões ou apelos o risco de cometimento de genocídio em Gaza, como se pode observar nos parágrafo 108-109, páginas 67-70 do processo África do Sul v. Israel ao Tribunal Internacional de Justiça.

Sobre as medidas cautelares urgentes solicitados por África do Sul

As referidas medidas constam do parágrafo 144, páginas 82 e 83, e são no total 9, com realce para a suspensão imediata das operações militares israelitas em e contra Gaza (1). Na quarta medida a África do Sul solicita que o “Estado de Israel deve, em conformidade com as obrigações que lhe incumbem por força da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, em relação ao povo palestiniano enquanto grupo protegido pela Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, desistir de cometer todo e qualquer acto abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo II da Convenção, nomeadamente

  • matar membros do grupo;
  • causar lesões corporais ou mentais graves aos membros do grupo;
  • infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar a sua destruição total ou parcial e
  • impor medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo” (idem, pp.82-83).

Noutra medida, a África do Sul solicita a submissão da parte de Israel ao TIJ de “(…) um relatório sobre todas as medidas adoptadas para dar cumprimento ao presente despacho no prazo de uma semana a contar da data do presente despacho e, posteriormente, com a regularidade que o Tribunal determinar, até que o Tribunal profira uma decisão final sobre o caso” (8, idem, p. 83).

Issau Agostinho

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