e-RMB chinês: o push geopolítico e algumas implicações geo-económicas

As autoridades de Pequim anunciaram que o Banco Central Chinês começará a experimentar o Sistema de Pagamento Electrónico com a Moeda Digital (e-RMB), em 4 das grandes cidades daquele país, incluindo Beijing, exactamente na zona Sul, onde decorrerão os Jogos Olímpicos Invernais de 2022. Uma vez adoptada, qual push geopolítico motivador e quais algumas das implicações geo-económicas que trará?


A tecnologia de Blockchain

   O surgimento da tecnologia de Blockchain durante a crise económica e financeira de 2008, abriu portas ao lançamento da primeira crypto-currency (moeda digital) chamada Bitcoin (BTC) no mercado financeiro digital, completamente independente do tradicional. Essa tecnologia permite o registo das operações efectuadas, criptá-las num bloco de dados interligados que evita fraudes. Por ser um sistema que permite a interação entre o A e B, graças ao mecanismo Peer-to-Peer, a transação (compra e venda de BTC, ou compra com BTC) acontece sem intermediação do sistema bancário tradicional.

   A não intermediação do sistema bancário tradicional (Banca comercial e Banco central dos países aderentes ao SWIFT) é o que distingue as cripto-moedas (BTC é uma delas, ao longo de anos surgiram outras mais) dos sistemas de pagamento electrónico com os ATM e do dinheiro físico, mas também por ser uma crítica movida ao sistema bancário internacional e os seus principais bancos pela crise capitalista da primeira década do século XXI, cujas consequências sociais originaram amplos movimentos de protestos nos EUA, com Occupy Wall Street, ou na Europa, com destaque para o Movimento 15-M (hoje Podemos, na Espanha).

   Desde o lançamento do BTC, o seu valor no mercado financeiro digital aumentou exponencialmente. Por exemplo, segundo dados, se em 2009 1400 BTC eram necessários para compra 1 USD, em Dezembro de 2017 já eram necessários 20mil USD para comprar 1 BTC, o valor máximo registado até agora. Hoje, em média, 1 BTC vale 8 mil USD. Segundo Galia Benartzi, que falava na TED em 2017, nesta altura a sua carteira financeira mundial era estimada em 15 bilhões de USD, dados deste ano apontam para cerca de 150 bilhões, valor que chegará a 2 trilhões de USD ao longo desta década.

Protecionismo digital chinês

   Embora alguns países nórdicos (Suécia e Dinamarca) e outros comecem gradualmente a substituir o dinheiro sonante com o uso de cartões de crédico ATM e e-money para uma sociedade cashless, a China possui o primato em termos do percentual de utilizadores de formas de pagamento cashless e digitais, graças aos dispositivos Alipay e WechatPay, já empregues nas trocas comerciais online por cerca  de 80% da sua população.

   O desenvolvimento destas formas de pagamento na China são consequências naturais ou pré-estabelecidas não só do desenvolvimento da indústria aero-espacial e das TICs naquele país, mas também da sua política de Internet Soberana, inserida no âmbito da Great Firewall, que é uma barreira virtual que restringe e limita o acesso a partir da China à Internet e aos sites que normalmente são acessíveis no mundo afora, tais como Google ou Wikepédia. Trata-se, de facto, de um protecionismo digital que impulsionou o nascimento no país de empresas rivais, que graças aos mais de 700 milhões de usuários e ao poder de compra, tornaram-se em multinacionais.

   Deste protecionismo digital chinês – comum entre todos os países possuidores de Kow-How tecnológico que é fundamental para a 4ª Revolução em curso – surgem e se desenvolvem a We Chat como serviço SMS equivalente a WhatsApp, a Baidu como motor de busca equivalente a Google, Weibo equivalente a Facebook, para além da Alibaba como plataforma de compra online equivalente a Amazon, Huawei como smartphone concorrente da Apple e Samsung, a Tik Tok que se rivaliza com Instagram, entre outras.

App chinesas competitivas

   Durante a quarentena em vigor em muitas partes do mundo devido ao Covid19, algumas App chinesas de Social Media mostraram-se extremamene competitivas, estando no top das App mais descarregadas nos EUA durante última semana de Março de 2020, segundo a Statista:

 

   Terá sido este apogeu chinês um factor motivador que esteve na base do lançamento do Room pelo Facebook, um serviço que permite a realização de vídeo-conferência nas contas Facebook de cada usuário com múltiplas janelas em directo,  que já opera na Itália e em alguns países, cuja disponibilização internacional será lançada nos próximos dias.

Huawei e 5G

   Uma das mais celebradas marcas chinesas no mundo dos smartphone é a Huawei, que segundo Statista representa 15% de Market Share (percentual do mercado) tendo em conta as vendas de smartphone no último trimestre de 2019. Para a Statcounter, este valor baixou para 3º lugar com dados da venda global de smartphone de até Abril 2020:

   Não obstante, o lançamento da rede da 5G pelas principais companhias de telecomunicação chinesas, em Novembro de 2019, deu uma vantagem competitiva a Huawei, pois figura entre as primeiras companhias a produzir os telemóveis da 5G do mundo (telemóveis 5ª Geração), que permitem uma conexão 3 vezes mais rápida do que anterior 4G, e sem os quais não é possível aceder a rede 5G e dos benefícios (e malefícios eventuais) que oferece, num mundo cada vez mais digital e com a Inteligência Artificial no centro desta 4ª Revolução em curso.

   Com o lançamento sucessivo em mais de 3 dezenas de países do mundo da rede 5G (África do Sul o único país africano na lista), Huawei foi admitida, por exemplo, para fazer parte do conjunto das telefonias do Reino Unido, embora com as devidas restrições, o mesmo que nos EUA e noutros países europeus, e assim o desenvolvimento tecnológico da China vê-se premiado.

Um push geopolítico

   Todavia, o desenvolvimento tecnológico da China e a consequente evolução para a e-RMB deve ser também enquadrado ao nível de um push geopolítico, isto é, das motivações geopolíticas decorrentes da guerra comercial com os EUA, que precipitou um debate académico-político sobre o mundo unilateral e o multilateral, e um confronto ideológico entre o mundo unilateral a favor do protecionismo económico, misturado com ideias de direita anti-imigraçaõ e estranhamente anti-liberalismo post-Reagan, e o mundo multilateral a favor do liberalismo económico regulado pelas instituições de Bretton Woods, mas também anti-democracia liberal post-Muro de Berlim.

   Este push geopolítico entre uma potência económica dominante e a outra nascente determinará o predomínio de um sobre o outro ao longo desta década, ou então a coabitação entre ambas, evento raro nas relações internacionais post-Guerra Fria, mas não impossível.

   Por se tratar de um mundo em plena Revolução das TICs, assiste-se à uma gradual transferência da realpolitik, bem como da weltpolitik do campo de batalha tradicional (com guerras convencionais, embargos económicos e fricções diplomáticas) para o campo digital, da Inteligência Artificial, do CyberEspaço, onde decorrem e decorrerão os confrontos pela supremacia no sistema internacional como o conhecemos hoje. Este confronto poderá ser de natureza económica, militar, cultural ou tecnológico, mas será cada vez mais em silêncio e distante do olhar e percepção dos comuns mortais.

   Assim sendo, se até agora a guerra convencional era última rátio dentro do jus ad bellum, nesta nova confrontação artificial mas real, o hardpower será naturalmente empregue, mas muito mais como instrumento de persuasão e dissuasão e menos como de confrontação directa (Guerra-Fria 4.0?), dada não só a inter-dependência financeira existente à escala global, à uma saturação natural face a guerra convencional no seio dos seus actores e promotores, mas sobretudo à uma paridade de poder bélico existente hoje entre os maiores actores do sistema internacional, que dita o equilibrio e a balança de poder, transferindo suas divergências em novos campos de batalha fora das suas fronteiras naturais, mas lugares sob sua influência directa, geralmente países em vias de desenvolvimento.

   A saturação face ao alcance extraterritorial das sanções económicas estado-unidenses às demais potências militares do sistema, como a Rússia e o Irão, também podem influir no nascimento de formas de pagamento alternativas às existentes.

   Nisso, o presidente Putin se tem manifestado publicamente em dadas ocasiões sobre a necessidade de se encontrar formas alternativas ao dólar. Por exemplo, durante o International Valdai Discussion Club, em Sochi em 2018, disse que “Os americanos fazem de tudo para minar a confiança do dólar como instrumento de pagamento universal…todos começam a pensar ao plano B…precisamos de um outro sistema de pagamento global diferente do SWIFT”. Ele pronunciou estas palavras depois de Administração Trump ter saído dos JCPOA  (Acordo nuclear com Irão, assinado em 2015) em 2018, e propor sanções contra qualquer empresa ou Estado que fizesse trocas comerciais com o Irão. Já em 2020, a Administração Trump aprovou sancões económicas contra países e empresas alemães e russas que trabalham no âmbito do Nord Stream 2, que trará gás da Rússia para Alemanha, passando no mar Báltico.

   No caso, para contornar as sanções, a União Europeia instituiu em Novembro de 2019 a INSTEX, que permite a continuação de trocas comerciais com o Irão sem prever o uso de moedas oficiais dos dois parceiros comerciais, enquanto que Venezuela lançou em 2018 a cripto-moeda Petrodólar, igualmente pelas mesmas razões, mas também pelas dificuldades em reaver parte da sua reserva em outro retida em Londres.

e-RMB não é como BTC

   Segundo Robleh Ali, autor de The emergency of digital currencies, a principal diferença entre o envio do dinheiro sonante e o envio de BTC, consiste no facto que com o primeiro se A quiser enviar dinheiro a B, A vai ao seu Banco comercial, que por meio do Banco central o envia ao Banco comercial do B e que por fim o envia a B, enquanto que com BTC A envia directamente o dinheiro a B, sem interferência de banco algum.

   Como vimos, existem já formas de pagamento digital na China, com AliPay ou WechaPay, e essa transação acontece geralmente entre A e B.  Contudo, com a experimentação do e-RMB pelo Banco Central Chinês, tal significa que haverá a intermediação de um banco entre A e B, e havendo tal intermediação se estará perante uma cripto-moeda digital oficial do Estado, e não uma cripo-moeda independente Peer-to-Peer. Em poucas palavras, a China se tornerá o primeiro Estado a ter uma moeda ditigal oficial controlada pelo seu Banco Central.

Algumas implicações geo-económicas

   A ser adoptada, há questões que sobressaem relativamente a e-RMB. Por exemplo, será uma moeda exclusiva ou complementar nas relações comerciais no mercado interno e externo da China? Será uma moeda de reserva nacional? Será uma divisa internacional ao lado de dólar, euro, ouro e outras? As IPO na sua bolsa de valores serão transacionadas em e-RMB?

   Em primeiro lugar, na ausência de respostas é lícito especular. E uma das especulações é que ao ser adoptada como moeda oficial, exclusiva ou completar, para as relações comerciais e financeiras internacionais, algumas divisas internacionais poderão ser gradualmente substituídas por e-RMB, à medida que essas trocas comerciais forem sendo cada vez mais digitais e cashless fruto do desenvolvimento das TICs e do receio de entrar em contacto com notas por conta de vírus em curso.

   Em segundo lugar, considerando o poder de compra da classe média emergente da China, as empresas fornecedoras, internas ou externas, deverão adoptar a moeda oficial do cliente chinês, isto é, e-RMB. Se olharmos aos gastos dos chineses no turismo global, que segundo a Statista montam aos 277 bilhões de dólares entre 2008-2018, uma média de 27,7 bilhões por ano, os principais destinos do turista chinês, fundamentalmente a Europa, se poderão ver na necessidade de usar e-RMB, ou então recusar-se e perder uma das principais fontes de renda e de emprego para centenas de milhares de cidadãos de países como França ou Itália. Os governos de países destinatários dos turistas chineses terão uma decisão a tomar, com olhos nas devidas implicações económicas e políticas dessas decisões nos seus tecidos  produtivos e nos seus cidadãos-eleitores.

   Em terceiro lugar, por ser o maior país importador de recursos energéticos do mundo, com os países inseridos na OPEC e OPEC+ no top dos 15 exportadores, que exportaram cerca de 90% de petróleo para a China em 2019 (Angola 4º com cerca 9,5%), a China poderá sentir-se tentada em negociar os novos contratos de fornecimento em e-RMB. A eventual desindexação do petróleo ao dólares não será indolor para os países que aderirem, que sejam da OPEC ou não, pois poderão sofrer pressões por parte dos EUA para não cederem ao alcance extraterritorial da e-RMB em eventuais novos contratos de fornecimento. Seguramente, entre ambos vencerá quem der alternativas melhores, tendo em conta que muitos desses países dependem do petróleo para os rendimentos financeiros necessários para as suas economias, empresas e famílias.

   Em quarto lugar, a exportação do Know-How poderá ser necessário para os países interessados em e-RMB mas sem estruturas tecnológicas para fazê-lo circular nos seus sistemas de pagamento electrónico e digital, e aqui a China poderá concorrer com os demais países para exportar a tecnologia aos países desprovidos dela. Daqui se poderá inserir o exemplo de Petrodólar de Venezuela, que eventualmente tem menos chances de sobreviver sem um maior input tecnológico de países com Know-How sobre as cryptografias, dados e melhor sistema de rede internet da 5G.

   Em suma, o e-RMB será um marco para a China e para as relações comerciais e financeiras deste década, e quiça, deste século. Mas, mesmo influenciando no sistema financeiro internacional, as suas implicações geopolíticas mais profundas não só neste sistema, mas também no internacional em si, dependerão da evolução ulterior da revolução em curso, da contra-proposta da parte dos países rivais, mormente os EUA, e a vontade de países com que a China tem grandes volumes de negócios em aceitar a moeda digital como moeda das trocas comerciais. Tudo isso, e como a China já habituou o mundo, poderá acontecer de forma paciente e paulatina, eventualmente sem disparar um só colpo dos canhões hardpower em contínuo build-up. Se tudo correr como Pequim projecta, em 2022 os participantes dos Jogos Olímpicos Invernais poderão ser os primeiros na história a usar uma moeda digital oficial de um Estado organizador!

Issau Agostinho

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